A igreja de Jesus, o Cristo, é o descobrimento do
reino de Deus dentro do homem, o "nascimento pelo espírito", e o
subsequente amor universal de todos os seres que são objetos do amor divino. Eu
aceito o catolicismo romano por causa dos elementos de Catolicidade cristã que
ele ainda possui, mas não o aceito por causa dos elementos humanos, por demais
humanos, mesmo infra-humanos, que se introduziram no seu organismo eclesiástico.
Por razões idênticas, não aceito também, o protestantismo como tal, embora
reconheça que nele existem elementos cristãos de real valor.
Desde que se exclua da religião qualquer elemento
interesseiro - de egoísmo individual, político, diplomático, financeiro -
pode-se ter experiência pessoal e profunda do espírito do Cristo.
Infelizmente, prevaleceu no mundo a ideia de
"igreja" em vez do conceito "religião". Jesus não fundou nem
defendia uma igreja, no sentido tradicional do termo, mas era um homem
religioso, possuía o mais profundo conhecimento intuitivo de Deus e do reino dos
céus, mas não limitava esse conhecimento a nenhuma organização burocrática, a
nenhuma moldura eclesiástica, como mais tarde se inventou.
Admitamos que as igrejas cristãs sejam etapas ou
estágios evolutivos rumo ao Cristianismo, tentativas mais ou menos felizes ou
infelizes de interpretar o Cristo do Evangelho - mas nenhuma delas é o
Cristianismo e as igrejas que isso ousarem afirmar provam que junto a sua
profunda ignorância aliaram a mais repugnante arrogância.
Qualquer teologia eclesiástica é, em última
análise, uma caricatura quando confrontada com o retrato do Cristo que brilha
nas páginas do Evangelho. O protestantismo do século XVI prometeu para a
humanidade cristã restabelecer o retrato autêntico do Cristo, tão horrivelmente
deturpado pelo catolicismo romano, desde o século IV até hoje, mas, a despeito
dos reais serviços que prestou para a humanidade, o protestantismo também acabou
pintando uma caricatura do Cristo real.
Resta portanto ao homem sincero, fechar os olhos
a todas as teologias, antigas e modernas, e, vivendo intimamente a essência do
Evangelho, redescobrir intuitivamente, nas profundezas de uma vidência
espiritual, a efígie incontaminada e pura do Cristo eterno e universal do
Evangelho. Mas, quem tal coisa fizer será excomungado como "herege" e
"apóstata" pelos teólogos das igrejas, como aconteceu, há vinte séculos
atrás, para aquele homem sincero (Paulo de Tarso) que professou a verdade sobre
o Cristo que o curara da cegueira e foi por isto execrado e expulso pelos
teólogos cegos da "igreja infalível" do seu tempo e país.
Diz Albert Schweitzer que o cristão de hoje,
devidamente vacinado com o soro das teologias eclesiásticas, se tornou imune
contra as investidas do Cristo do Evangelho; a injeção de um pseudo-cristianismo
manso e acomodatício o imunizou contra o espírito revolucionário do Cristianismo
agressivo e dinâmico das catacumbas e dos anfiteatros.
O melhor meio para acabar com o Cristianismo do
Evangelho não é combate-lo diretamente, porque a luta aberta cria oposição,
heróis e mártires; o melhor meio é vacinar o cristão com a boa
"cultura" da teologia eclesiástica que, por fora, se pareça com o
Cristianismo. Quem não possui Cristianismo algum pode ter fome e sede do mesmo,
uma vez que toda alma humana é cristã por natureza; mas quem possui uma bem
feita substituição do Cristianismo, vive na permanente ilusão de que a sua
erudita teologia seja o Cristianismo de Cristo - e assim está com todas as
portas fechadas para o Cristianismo genuíno e integral.
O clero romano (não propriamente o catolicismo)
é, hoje em dia, a mais poderosa organização político-financeira existente dentro
do Cristianismo. Tudo o que favorece o prestígio e as finanças do clero é
considerado bom, mesmo que seja diametralmente oposto ao espírito do Cristo, e
tudo o que desfavorece a causa do clero é considerado mau, por mais que promova
o Cristianismo real. E, como o católico é tanto mais católico quanto mais
submisso for ao clero, segue-se que, logicamente, não há possibilidade para o
católico obediente descobrir o Cristianismo genuíno e integral; só pode aceitar
o Cristianismo na forma condicionada que lhe é oferecida pelo clero, que não
permite ao povo a menor autonomia espiritual. O conhecimento do Evangelho de
Jesus, o Cristo, seria o princípio da emancipação e maturidade espiritual; mas
essa emancipação da tutela clerical desfavorece a causa político-financeira da
hierarquia sacerdotal - logo, ela é má e deve ser combatida como heresia e
apostasia do Cristianismo...
Temos, nos "Atos dos Apóstolos" um
paralelo a esses negócios sagrados: Quando o apóstolo Paulo - que parece ter
sido bem pouco "católico" - começou uma campanha sistemática contra o
comércio que o ourives Demétrio fazia com os "templozinhos da deusa
Diana", na cidade de Éfeso, revoltou-se o fabricante desses amuletos e
ídolos, porque via que o povo, na medida que se cristianizava e abraçava o
Evangelho do Cristo pregado pelo apóstolo, diminuía na sua fé e devoção aos
ídolos que Demétrio vendia em massa. O ourives de Éfeso fez o que seus
sucessores e amigos de hoje continuam a fazer: difamou Paulo como inimigo da
religião e incitou contra ele as massas populares, que, quase o
lincharam.
Quando, em nossos dias, alguém favorece a causa
da Catolicidade cristã contra os interesses do catolicismo romano, é
invariavelmente punido como "inimigo da igreja", "herege",
"apóstata", "traidor", etc., porque são muitos os
Demétrios...
Texto extraído do livro autobiográfico de Huberto
Rohden, Por Um Ideal.