Saturday 1 February 2020

MAHATMA GANDHI, o Paradoxo Místico-Político

Às 17h17 do dia 30 de janeiro de 1948, Gandhi caminhava com suas sobrinhas em direção à uma reunião de oração, quando foi morto por um nacionalista hindu.

Poucos momentos depois, sucumbe uma legenda viva, para a glória de viver como legenda espiritual para a humanidade. Ele tinha 78 anos de idade.

“Os historiadores do futuro, acredito, considerarão este século XX não como o da era atômica, mas como o da era de Gandhi”, escreveu E. Easwaran, um de seus biógrafos.

“Um condutor de seu povo, não apoiado em qualquer autoridade externa; um político cuja vitória não se baseia em astúcias nem técnicas de política profissional, mas unicamente na convicção dinâmica de sua personalidade; um homem de sabedoria e humildade, dotado de invencível perseverança, que empenha todas as suas forças para garantir a seu povo uma sorte melhor; um homem que enfrenta a brutalidade da Inglaterra com a dignidade de um homem simples, e por isso se tornou um homem superior – futuras gerações dificilmente compreenderão que tenha vivido na terra, em carne e osso, um homem como esse.” – “Acredito que as opiniões de Gandhi foram as mais esclarecidas de todos os políticos do nosso tempo. Devemos nos esforçar para fazer as coisas em seu espírito: não usar de violência na luta pela nossa causa, mas pela não participação em qualquer coisa que se acredite ser má.” Albert Einstein

Uma “Grande Alma”, e cuja vida era inteiramente crística, embora ele não tenha sido oficialmente cristão. A sua grandeza não está em ter sido um grande místico e nem em ter sido um hábil político. Está em ter equilibrado em sua alma dois mundos quase sempre desequilibrados em outros homens – oração e ação. Com o fenômeno Gandhi a história da humanidade entrou numa nova fase de evolução. O mundo de hoje não compreendeu ainda a grandeza desse homem ... são palavras de Huberto Rohden.

A primavera deste século XXI vive sob o inverno sombrio dos séculos passados da história humana, por onde ainda se arrastam multidões pelos vales estéreis da mediocridade; vales e precipícios onde a paz efêmera dos armistícios só reina entre as constantes guerras provocadas pela ganância e egoísmo humano. Entretanto, superando todas as vicissitudes, surgiu um homem que galgou o Himalaia! E com essa perspectiva positiva futura, onde o mesmo possa acontecer com muitos, fornece, apesar de melancólica, a visão de que um dia o ambiente na face da terra possa ser habitado por seres que sobem às alturas do conhecimento superior e da Paz.

Em uma bela edição ilustrada dos anos 50 de quase 400 páginas, o livro “MAHATMA GANDHI, o Apóstolo da Não-Violência” do filósofo, educador e teólogo brasileiro, Huberto Rohden, traça um perfil filosófico da personalidade de Gandhi e indicando inclusive o caminho a seguir para chegar no mesmo nível de consciência que o mestre Indú atingiu. Adiciona-se a esses escritos, opiniões de outras famosas personagens da história sobre essa grande alma que foi Mohandas Karamchand Gandhi e outras informações.


“A humanidade conhece alguns místicos e muitos políticos – mas um místico-político, ou um político-místico, é algo muito estranho e, à primeira vista, impossível. O místico trata das coisas de Deus e do mundo espiritual; o político trata das coisas dos homens e do mundo material – será possível que, dentro do mesmo indivíduo humano, se harmonizem esses dois mundos, tão distantes e, aparentemente, tão antagônicos? 

Se o monismo cósmico não fosse um postulado da lógica, se não compreendêssemos que só pode haver um único princípio eterno de todas as coisas, seja ao nível material ou espiritual, estaríamos dispostos a professar dualismo zoroastriano e negar a compatibilidade de elementos tão incompatíveis como a mística e a política.

No homem comum, de estreitos espaços internos, não pode, de fato, haver amizade e harmonia entre o Deus do mundo e o mundo de Deus. 

Quando aparece um homem de vastíssimos espaços internos; onde todo um sistema planetário pode girar livremente, sem colisões nem catástrofes, em torno de um único sol, que tudo ilumina e vitaliza, se forma então no interior desse sistema, uma tensão dinâmica que, para manter o equilíbrio, tem que intensificar a sua força centrípeta na razão direta da sua força centrífuga, a fim de estabelecer um cosmos que não sucumba ao caos. Mas de vez em quando aparece um homem cósmico dessa natureza, um homem que equilibra extremos e sintetiza antíteses aparentemente inconciliáveis. 

A grandeza de Gandhi não está em ter sido um grande místico, nem em ter sido um hábil político – está em ter equilibrado em sua alma dois mundos quase sempre desequilibrados em outros homens.

A política vale pelo que dá ou realiza. A mística vale pelo que recebe e pelo que é. A política é considerada ativa – a mística tem fama de ser passiva; no político, a atividade é geralmente máxima, a ponto de esterilizar a sua passividade. No místico é máxima a passividade e que apesar de mínima a atividade, ela não é estéril.

O equilíbrio está em ser dinamicamente passivo, ou passivamente dinâmico – eis portanto, o problema central da vida humana, o segredo da sua grandeza e felicidade e a fonte suprema da sua força realizadora no seio da humanidade.

O homem medíocre, ativo, vive na alucinação coletiva de que o seu ego humano é que realiza as grandes coisas no mundo; que é a sua inteligência e astúcia, o seu dinheiro, a sua erudição, a sua incessante luta social, comercial, industrial, política, diplomática, que estes fatores sejam a causa real e principal das coisas que ele realiza ou tenta realizar. E se alguém lhe disser que, por detrás de todos esses elementos ponderáveis e palpáveis da sua ruidosa atividade, há um elemento imponderável e intangível que, em última análise, é a fonte inicial e profunda de tudo quanto de realmente grande acontece em sua vida, esse homem dinâmico balança a cabeça incrédulo, e considera poeta, filósofo ou místico, ou pelo menos nada prático, o homem que tão estranhas coisas profere. Esse homem ignora o que seja passividade dinâmica ou serenidade criadora. Não tem consciência do imenso reservatório de forças cósmicas, esse invisível oceano que se alarga, incomensurável, misterioso e infinito, para além de todos os horizontes da percepção físico-mental. Para ele só existem os pequeninos riachos que brotam do seu conhecido ego, correndo não se sabe para onde. Esse homem medíocre e míope nem sequer suspeita que esse riacho da sua atividade febril vai para o silencioso mar, donde veio. 

Gandhi era de uma vasta atividade e profunda passividade, e tudo que ele dava a seus semelhantes, na horizontal, recebia de Deus, na vertical. Por isso, a meditação na segunda-feira toda, o dia de silêncio na quinta-feira, onde só se comunicava por escrito, eram para ele a coisa mais importante, pois eram as silenciosas nascentes da sua passividade dinâmica que alimentavam os ruidosos rios da sua incessante atividade. 

O povo deu a Gandhi o nome de “mahatma”, isto é, “grande alma”, porque sentia intuitivamente que, para além do cenário das suas visíveis realizações humanas, havia misteriosas regiões de invisíveis realidades divinas – e a sua grandeza estava precisamente na constante ligação do seu mundo visível com o mundo invisível; toda a sua política externa assentava alicerces na sua mística interna. É fácil trabalhar no mundo visível – o grosso da humanidade profana vive unicamente nesse plano. Difícil é contemplar o mundo invisível, longe de todos os mundos visíveis, como os ascetas místicos.

Muitos são os impuros no meio dos impuros. Poucos são os que vivem puros. Pouquíssimos conseguem viver puros no meio dos impuros. Esses últimos são os verdadeiros “mahatmas”, as grandes almas, os homens cósmicos, plenamente realizados. O supremo objetivo do Evangelho de Jesus é a criação desses homens, dessas “novas creaturas em Cristo”.

A Índia foi sempre o país dos iogues, dos ascetas, dos místicos, dos mestres da renúncia e espiritualidade. Gandhi também fundou a sua colônia de retiro espiritual. Era uma espécie de fazenda onde moravam numerosas pessoas de vida disciplinada e sem propriedade individual. Concentração mental e contemplação espiritual; abstenção de carne e bebidas alcoólicas; trabalhos manuais e agrícolas; reuniões de culto – tudo isto se observava na colônia de Gandhi, e ele mesmo era uma espécie de patriarca dessa comunidade.

Até aqui, nada de especial; tudo isso se praticava, havia séculos e milênios, na Índia.

Acontece, porém, que esse místico solitário aparece em palácios de reis e chefes de Estados, nas grandes cortes europeias; toma parte em debates políticos, em torno de problemas nacionais e internacionais; agita questões de grande relevância; porque esse homem é um hábil jurista, formado pela Universidade de Londres, que conhece e usa toda a dialética dos advogados e possui toda a perspicácia dos grandes estadistas. E no seu próprio país, aparece no Congresso Nacional e pleiteia, contra um poderoso império, a emancipação política de 430 milhões de conterrâneos escravizados; mas não usa de nenhuma das armas materiais de que seus antagonistas se servem. Substituiu a arma pela alma. Esse homem não acumula dinheiro para si; vive em extrema pobreza e simplicidade, nutrindo-se de umas poucas frutas e do leite cru de uma cabra, que nem era dele. Veste um calção e anda descalço, ou de sandálias, mesmo nos salões dos magnatas europeus, que o apelidaram de “faquir seminu”. Pelas mãos desse homem estranho, tão solitário com Deus quanto solidário com os homens, imensas fortunas passaram - mas ele mesmo não possui residência e gastava apenas alguns centavos por dia para sua manutenção. 

Por cinquenta anos, cercado da mais imunda política e diplomacia internacional, esse homem não se desvia da sua linha de absoluta verdade e sinceridade; não admite manobras escusas; não conhece jogo por detrás dos bastidores. Defensor máximo da liberdade de seu povo, admite uma única tirania para si mesmo: a obediência incondicional à sua silenciosa voz interior, como ele chama a voz da consciência.

O enigma Gandhi é tão diáfano como a luz solar – e tão misterioso como uma noite estrelada. Sempre solitário em Deus, nunca deixa de ser solidário com os homens.

Com o fenômeno Gandhi, a história da humanidade entrou numa nova fase de evolução. Está provado, finalmente, que são compatíveis essas duas coisas tidas por incompatíveis, a mais intensa mística interior e a mais extensa dinâmica exterior. Esse homem realizou na sua vida a grande síntese do espírito e da matéria, do fogo e da água. Nele, o Verbo se fez carne!

Com esse exemplo, o materialista não tem mais justificativa para sua falta de espiritualidade – e o espiritualista não tem mais o direito de desertar do mundo material. Foi realizada a grande síntese, e o que foi possível uma vez na Índia é possível por toda a parte. O Mahatma não é da Índia, nem do Oriente – ele é do mundo e da humanidade. 

Em tempos passados, quando um homem tinha o seu contato com Deus, o primeiro passo consistia em libertar-se de todas as coisas do mundo; abandonar o mundo de Deus a fim de viver em Deus fora do mundo. O ponto culminante da vida ascética era a deserção do mundo. 

Com Gandhi aparece uma nova forma de ascese – a ascese da libertação, substituindo e aperfeiçoando a ascese da deserção. Quem deserta das coisas materiais mostra boa vontade – mas não prova verdadeira compreensão.

De um homem que nada espera do mundo, tudo pode o mundo esperar. 

Mas há, para além do homem dinamicamente ativo e do estaticamente passivo, uma terceira alternativa, que é o homem dinamicamente passivo ou passivamente dinâmico. Com esta qualificação designamos o homem cósmico, esse homem raríssimo que, depois de se identificar totalmente com o seu Eu divino, passa a manifestar esta sua implosão mística numa vasta explosão ética, transbordando a sua experiência divina em vivência humana. Uma vez que o homem atingiu a consciência da paternidade única de Deus, está em condições de realizar a vivência da fraternidade universal dos homens. E, neste caso, a ética não é apenas moralidade, que pode existir mesmo sem a experiência mística; mas o seu agir externo será o espontâneo transbordamento, a irresistível explosão da sua intensa implosão mística. 

Quando alguém sugeriu a Gandhi a ideia de abandonar o mundo profano da política e retirar-se em uma caverna para viver como místico, ele respondeu: “Eu trago essa caverna dentro de mim”. Quem consegue transferir essa caverna para o seu interior, refugiando-se nesse santuário quando sente necessidade, este atingiu a culminância da sua libertação, da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. Mas para que alguém atinja essa liberdade, deve sujeitar-se voluntariamente à maior das tiranias, “tirania da silenciosa voz do interior”, e prestar obediência incondicional ao divino ditador da consciência. É este o “caminho estreito e a porta apertada que conduzem ao reino de Deus”. De maneira que a mais ampla liberdade supõe a mais completa tirania – tirania voluntária. 

“A Verdade” – escreve Gandhi – “é dura como diamante, mas é também delicada como flor de pessegueiro”. Quem não aceitar voluntariamente a dureza da Verdade, não chegará a desfrutar da delicadeza da flor do pessegueiro. Plenamente livre é somente aquele que voluntariamente se escraviza. E essa espontânea escravidão se refere não somente a Deus, mas também aos homens, nossos semelhantes; servir voluntariamente é se libertar totalmente. Nada mais escravizante do que o desejo de “querer-ser-servido” – nada mais libertador do que a vontade de querer servir! Quem não for escravo voluntário não pode ser homem livre – esse estranho paradoxo caracteriza a vida de Gandhi. Tão grande é a liberdade interior desse homem que ele se torna, exteriormente, escravo de seus conterrâneos, escravo do invasor britânico, escravo da humanidade inteira. 

Quem não se sente livre deve evitar servir aos outros e deve assumir ares de dominador, porque onde falta a essência têm que prevalecer a aparência. Mas quem traz dentro de si o testemunho da sua liberdade, pode ser servidor de todos, porque a sua liberdade não necessita ser escorada com pseudoliberdades. Quem é sábio pode admitir aparências de tolo; mas o tolo tem que evitar com cuidado essas aparências e assumir ares de sábio para que a sua pseudo sapiência não sucumba ao impacto da sua ignorância. 

O mundo de hoje não compreendeu ainda a verdadeira grandeza de Gandhi, sem dúvida um dos mais autênticos discípulos que Jesus teve entre os homens nesses mais de dois milênios de era cristã. Mas o espírito do Mahatma está trabalhando as consciências humanas, qual divino fermento, levedando aos poucos a massa profana e preparando o caminho para a grande alvorada crística.

Texto revisado, extraído do livro MAHATMA GANDHI

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