Durante muitas décadas, e em particular nos anos 60 e 70, sempre muito informal, espirituoso e com excelente bom humor, já famoso e respeitado filósofo, teólogo, educador e escritor, polímata e poliglota, Huberto Rohden era frequentemente solicitado para entrevistas e palestras pelos meios de comunicação do Brasil.
Se destacam, entre elas, algumas bastante célebres transmitidas pela famosa jornalista brasileira Xênia Bier. Na entrevista abaixo, uma reflexão sobre o livre-arbítrio no homem.
Xênia - Professor Rohden, entre cientistas e filósofos, existe a discussão sobre o livre arbítrio do homem. Existe esse livre-arbítrio?
Rohden - Todos os livros que eu conheço sobre o assunto fazem uma permanente confusão entre liberdade potencial e liberdade dinâmica. Faz parte da natureza de todo ser humano normal, que seja potencialmente livre, mas ninguém nasce dinamicamente livre. Porém, ao nascermos, nós temos todos os ingredientes necessários para uma libertação dinâmica.
A liberdade potencial é um presente de berço que todos recebem. No entanto, a liberdade dinâmica é uma conquista da consciência e que poucos conseguem realizar esse desafio. Muitos vão até o fim da vida e apenas têm a liberdade potencial que receberam ao nascer, mas nunca desenvolveram a sua liberdade de forma dinâmica.
Eu não creio que exista 1% da humanidade que tenha conquistado essa liberdade. Pois o grosso da humanidade não quer fazer um esforço de se libertar de sua escravidão tradicional. Nós somos escravos do dinheiro, do sexo, da sociedade, da cultura e escravos de muitas outras escravidões. Somos todos grandes escravocratas e grandes escravizados.
A lei que aboliu a escravidão negra é um fato histórico do passado. E quem foi que aboliu a escravidão branca, e a dos pele vermelhas, dos amarelos, enfim, a escravidão humana? Ninguém pode abolir por decreto. Agora, cada um pode tratar de abolir a sua escravidão individual e proclamar a libertação individual. Isto é possível. Mas quem é que faz? Não há 1% dos homens que são realmente livres. 99% são escravos até a morte.
X- E onde colocamos o livre-arbítrio nisso?
R- O livre-arbítrio existe desde o início, mas é apenas uma potencialidade – é matéria prima para o livre-arbítrio dinâmico. Mas quem não dinamiza o livre-arbítrio que recebeu como presente de berço, não se libertou, e o grosso da humanidade não se liberta, são escravos de tudo – não se libertam de nada.
Liberdade não quer dizer escapar das circunstâncias humanas... dinheiro, família, sociedade, cultura, instintos. Libertar está acima disso. Eu devo ser livre no meio dos escravos; eu posso ser puro no meio dos impuros. Isso eu chamo libertação. Não é fugir, não é abandonar – isto é covardia. Quem abandona confessa que é fraco. E fraqueza é escravidão. Eu tenho que ser livre no meio da escravidão.
X- Passar pela sarça ardente sem se queimar, que simbolicamente representa a passagem bíblica descrita no Livro do Êxodo, onde a sarça queimava, mas não foi consumida pelas chamas!
R- Mas, é claro, a fuga não é solução. Abandonar não é solução. Eu tenho que me libertar da sociedade no meio da sociedade. Eu tenho que me libertar da escravidão da família no meio da família. Eu tenho que me libertar da escravidão do dinheiro no meio do dinheiro. Isto eu chamo libertação. A libertação não é uma fuga, isto é covardia.
X- E o que é a libertação, professor Rohden?
R- A libertação é saber usar de tudo, mas sem abusar de nada, e isto é libertação. Usar de tudo sem abusar de nada. Abusar é proibido. Recusar é permitido. Usar é recomendado. É isto que eu chamo de liberdade. Usando de tudo o que é oferecido, mas não abusando de nada.
X- Mas professor, o senhor há de concordar comigo... ainda a pouco, eu li um trecho de Lao Tse, afirmando que quem assim age, sente-se só e perseguido. O senhor concorda?
R- Bendita solidão Xênia! Nós temos que entrar numa grande solidão para andarmos muito bem acompanhados.
X- Professor Rohden, é esta liberdade que o senhor propõe, não a que anda por aí?
R- Usar sem abusar, isto é liberdade.
X- Olhe, professor, eu ousaria dizer que eu sou livre, porque eu sou capaz...
R- De certo ponto, nós somos todos aprendizes da grande arte da libertação, aprendizes apenas, mas não formados. Somos principiantes da arte de nos libertarmos sem fugir de nada. Libertar-nos de tudo sem fugir de nada.
X- Eu nunca achei válido fugir, Professor Rohden.
R- Fugir é condição de fraqueza e de medo, e quem tem medo ainda é escravizado pelo medo.
X- Professor Rohden, eu estou lendo um livro que o senhor conhece e que comentei no programa passado: a Autobiografia de um Iogue Contemporâneo, de Yogananda. Mas muitas coisas, eu como ocidental, me assusto. E lembro de suas palavras: nem completamente espírito, nem completamente matéria. Para nós, os ocidentais, seria muito difícil a completa e total prática da filosofia hindu!
R- O hindu se mostra muito mais inclinado para o espiritualismo do que para o materialismo. Nós, os ocidentais, preferimos quase sempre o materialismo do que o espiritualismo. São dois extremos. Nós não podemos ser espiritualistas, também não devemos ser materialistas. Devemos estar equilibrados no meio, entre a matéria e o espírito, porque somos um composto de duas antíteses que devem ser sintetizadas. Há antítese de matéria e há antítese de espírito, mas a síntese é possível.
Nós devemos sintetizar harmoniosamente em perfeito equilíbrio a matéria e o espírito. Isto, nós chamamos de o homem cósmico, o homem integral, ou o homem universal. O Universo representa o Creador Infinito e a soma de todas as creaturas finitas. O equilíbrio harmônico entre espírito e matéria. Isto é que se chama Filosofia Integral. Tanto o oriental quanto o ocidental não alcançaram esta filosofia. Eventualmente, alguns indivíduos isolados, sim, mas não há um povo que tenha chegado. Não há um povo que seja espiritualista, não há um povo que seja materialista. Há indivíduos que fazem a harmonia entre espiritualidade e materialidade. Isto eu chamo usar de tudo sem abusar de nada. Isto é liberdade.
X- A divulgação da filosofia hindu aqui no Ocidente é válida? Excluindo-se os excessos, a exploração, é válida para ao homem do ocidente?
R- Não integralmente, não como um todo. Agora, nós os ocidentais, que somos mais favoráveis ao materialismo, devemos nos aproveitar de tudo o que há de espiritual, de aceitável na filosofia oriental, mas não trocar o ocidente pelo oriente. É um outro extremo!
A humanidade integral não é oriental, não é ocidental, não é materialista e nem espiritualista. Ela é equilibrada, harmonizada entre duas antíteses numa maravilhosa síntese equilibrada. Esse é o nosso ideal. Isto nós chamamos Filosofia Cósmica, que se revela na vida de cada dia. Não é a filosofia da caverna, das ruas, dos templos ou dos conventos, mas é uma síntese equilibrada entre dois extremos que devem ser harmonizados.
X- O senhor esteve nos Estados Unidos e foi aluno de um discípulo de Yogananda, o Swami Premananda?
R- Sim, estive 6 anos nos Estados Unidos. Premananda foi discípulo e amigo de Yogananda.
X- E o que o senhor acha do trabalho deles?
R- O trabalho deles é uma tentativa de síntese entre duas antíteses. Tanto Yogananda quanto Premananda, fazem o possível para harmonizar os dois extremos ocidental e oriental. Até que ponto irão conseguir, ninguém poderá dizer. Conseguem em alguns alunos individuais, não conseguem para a sociedade, é claro, porque nós não podemos converter os outros. Podemos converter a nós mesmos.
Com isso, eles estão fazendo um excelente trabalho, porque eles não são unilateralmente espiritualistas. Também não são unilateralmente materialistas como nós. Eles querem ser bilateralmente orientais e ocidentais, e equilibrados ao mesmo tempo. É a filosofia deles. A intenção e o caminho estão certos.
Agora, até que ponto isto se possa conseguir em pleno ocidente, sobretudo norte-americano que é terrivelmente materialista, mais do que nós, mais do que a Europa... Porque o americano é muito técnico e pouco cultural. Ele prefere sempre a técnica à cultura. Sempre prefere as coisas materiais ao mundo espiritual. É um campo difícil para trabalhar. E há poucos que conseguem fazer a síntese, o equilíbrio, a harmonia entre o material e o espiritual, que é justamente o homem integral, o homem que vive no meio do mundo material sem ser materialista.
X- Professor, como o senhor vê o Brasil?
R- O Brasil nos últimos 50 anos abandonou a cultura europeia por causa das duas guerras mundiais. Abandonou a influência dessa cultura e se deixou massivamente influenciar pela norte-americana. E esse é o grande mal da civilização brasileira.
Éramos influenciados pela cultura europeia, sobretudo francesa, que é muito mais avançada do que a americana. Mas, devido às duas guerras mundiais que assolaram a Europa, o Brasil se voltou mais para os Estados Unidos que não perdeu nada com a guerra; e se mecanizou em vez de se humanizar. Nós estamos cada vez mais mecanizados e cada vez mais desumanizados. E é influência dos Estados Unidos.
Eu fui convidado para reger em caráter permanente, duas cátedras na Universidade de Washington: Filosofia e Religiões Comparadas. Recusei, porque não me conformei com a tendência mecanizada deles, deixando a cultura de lado.
X- Mas, não é uma lástima?
R- É uma lástima porque é o dinheiro é que manda. A técnica depende do dinheiro. Os Estados Unidos são muito mais tecnológicos do que a Europa, e mais desumanizados também. E nós estamos seguindo o exemplo dos Estados Unidos. Em vez de termos a nossa cultura de pura brasilidade, estamos nos deixando arrastar pela mecanização materialista dos Estados Unidos. Eu sei disto, eu estive convivendo com eles, quando estive na Universidade de Princeton como bolsista, além de correspondente de guerra, e também professor na Universidade de Washington por 6 anos.