Tuesday 1 February 2022

O EGO PERSONAL E O EU INDIVIDUAL DO HOMEM

O que impede a definitiva realização e felicidade do homem, de acordo com todos os mestres da filosofia racional e espiritual, está na ilusão de que o ego seja algo separado do Poder Creador.

Mas, em que consiste esse ego?

Certos filósofos acham que o ego não é uma substância permanente, mas a soma total das experiências sucessivas e transitórias, uma espécie de acervo de atos conscientes, considerado como não inerente em nenhuma base fixa.

Essa concepção pode ser considerada como paralela ao que a ciência atômica chama “átomo”.

Mas, o que é um átomo? É alguma substância permanente como aquela “partícula indivisível” da teoria atômica de Demócrito de Abdera, na filosofia grega? 1

A ciência moderna, através de Leibniz até Einstein, não admite átomos como partículas materiais, mas reconhece átomos como campos energéticos, polarizados em focos positivos (prótons) e focos negativos (elétrons). Mas, em que consistem esses campos energéticos, essas vibrações? Subsistem em si mesmas? São vibrações autônomas, auto subsistentes, independentes? Se assim for, essas vibrações polarizadas e equilibradas na unidade do átomo, são causa-não-causada, causa-primeira absolutamente independente; são, praticamente, o que se chama em filosofia, o Absoluto, o Infinito, o Eterno, Deus ou a Tese Absoluta.

Se o átomo estático-material de Demócrito, ou o átomo dinâmico-energético de Einstein não estão intimamente ligados em outra base como em sua causa eficiente e fonte produtora, então o átomo, quer estático, quer dinâmico, é a suprema e última Realidade do Universo, não somente do universo físico, mas também do universo metafísico.

Entretanto, a ciência nuclear já ultrapassou a concepção do átomo como consistente no jogo bipolar de prótons e elétrons; o último livro de Einstein sobre o “Campo Unificado” avança até à extrema fronteira do mundo físico, proclamando a luz cósmica como a origem de todas as coisas. No princípio era a luz; tudo foi feito pela luz. Esta paráfrase do início do quarto Evangelho é, hoje em dia, uma conquista da matemática e da física: todas as coisas do universo físico, sem excetuar os elementos da química, são gerados pela luz.

E a luz, foi gerada de quem?

Se a ela fosse apenas geradora, sem ter sido gerada, se ela fosse “pura atividade”, sem nenhuma mescla de passividade, certamente seria proclamada como a Causa Primeira e Absoluta do Universo. Entretanto, a ciência diz que a luz, por mais ativa, contém uma percentagem de passividade; a luz, por mais imaterial, não deixa de ser material. A sua imaterialidade é máxima na zona da luz; quer dizer que ela possui uma imaterialidade relativa, mas não possui uma imaterialidade absoluta; a luz, por mais ativa ou vibrante, não é absolutamente ativa, porque materialidade é passividade. Embora se dê à luz, por exemplo, 99% de atividade e apenas 1% de passividade, consequentemente, este único grau de passividade ou materialidade proíbe-a de ser atividade absoluta e total.

Se a luz fosse Causa Primeira e Absoluta, Causa-não-causada, devia possuir infinita atividade e nenhuma passividade; devia ser a pura atividade de que fala o filósofo Aristóteles. Mas não é o que acontece. A luz, embora a mais ativa de todas as coisas no universo físico, não é infinitamente ativa no Universo tomado em seu sentido total e absoluto. Para além da extrema fronteira da luz deve haver algo mais ativo, e, em última análise, a lógica obriga a chegar a um ponto tal onde haja algo de infinita atividade e de zero passividade, ou seja, a Realidade Absoluta, sem nenhum vestígio de irrealidade relativa.

Fato análogo se dá no plano do mundo mental.

O “átomo mental” do ego consciente não pode consistir em simples vibrações mentais ou atos conscientes, nem mesmo subconscientes. Por detrás desse “átomo mental” do ego, deve haver algo que lhe sirva de união íntima, assim como a luz física é a união íntima das vibrações polarizadas dos prótons e dos elétrons. E esse mesmo fenômeno de íntima união, essa espécie de luz de que os atos conscientes e subconscientes são originados, também não pode ser auto subsistente.

Conforme o critério do paralelismo físico-mental construído, os atos conscientes e subconscientes do ego, correspondem aos átomos protônico eletrônicos da física nuclear – ao passo que a base dessa íntima união, corresponde ao critério da fórmula einsteiniana. Essa base ou substrato superconsciente, de que o ego é manifestação consciente ou subconsciente, é o Eu.

Mas, assim como a luz física supõe algo anterior a ela, e causa da mesma, de modo análogo, o Eu, embora causador do ego, também é causado por uma Realidade superior; não é autônomo, independente, mas heterônomo, dependente, exigindo, em última análise, uma Realidade Absoluta como Causa Primeira.

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O ego não é, pois, ego subsistente em si mesmo nem separado do seu vasto substrato. O ego é um objeto derivado, intimamente ligado no sujeito do Eu, também derivado, ambos, porém, se ligam, ultimamente, numa Realidade não derivada.

O intelecto, que só atinge certa fronteira, considera o ego como algo separado e auto subsistente, criando a ilusão de persona ou máscara. Quando um ator fala no palco através da máscara de rei ou de mendigo, nem por isso é ele rei nem mendigo; por detrás da máscara, está o indivíduo. Esse homem não “é” rei nem mendigo, mas “funciona como se fosse” esses indivíduos. É um indivíduo mascarado de personalidade. O real é o indivíduo (o “indiviso”), o fictício é a persona ou máscara.

As pessoas dizem que sou professor e escritor, mas eu não “sou” nem isto nem aquilo, “funciono” apenas, no plano horizontal, através desses atributos ou “personas”, no cenário da vida terrestre. Eu sou o meu Eu, o indivíduo, que desempenha, por algum tempo, o papel do ego personal de professor e escritor. Eu “tenho” essa profissão transitória, mas eu não “sou” permanentemente isto. Eu sou o meu Eu individual, e não o meu ego personal.

Daqui a alguns anos ou decênios, não sei em que parte do Universo o meu Eu permanente e central desempenhará a função transitória de algum outro ego periférico, quiçá de operário ou varredor de ruas, possivelmente também de embaixador ou chefe de Estado. Entretanto, sejam quais forem as minhas funções transitórias, o meu Eu permanente e individual será sempre o mesmo, inatingido pelas vicissitudes periféricas. O meu Eu é eternamente idêntico a si mesmo. Jamais me divorciará do meu Eu central, porque isto sou eu.

Esse Eu central, todavia, não é acessível ao intelecto analítico; dele só tem noção a minha razão intuitiva. Para o intelecto só existe o ego, isolado, separado – para a razão existe o Eu, unido e solidário com o Todo.

O senso da separação do ego gera a consciência do pecado, ao passo que a consciência do Eu unido opera a redenção. A inteligência (Lúcifer) peca, a razão (Lógos) redime. A inteligência cria a ilusão da separação, a razão conduz à verdade da união.

Uma criatura auto subsistente é uma contradição em termos. Nenhuma criatura, precisamente por ser criatura, pode ser autônoma; toda criatura é por si mesma heterônoma.

Quando a inteligência cria o senso da autonomia do ego, abre a porta ao egoísmo, isto é, ao culto ou idolatria do ego como sendo uma divindade autônoma. O pecado é essencialmente a ilusão intelectual do separatismo do ego, que, nessa ilusão, tenta proclamar a sua independência. O sentido primitivo de pecado, é falha, desacerto. Este vocábulo era usado na antiguidade para expressar o fato de ter um flecheiro, nos jogos olímpicos, falhado o alvo a que atirava.

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Os livros sacros de todos os povos chamam o ego personal, constituído de elementos físico-mentais, o “homem velho”, o “homem terreno”, o “homem externo”, o “inimigo”, o “escravo” – ao passo que designam o Eu individual, racional-espiritual, como o “homem novo”, o “homem celeste”, o “homem interno”, a “nova criatura em Cristo”. Os termos “velho” e “novo” referem-se ao processo da consciência e sua progressiva evolução histórica, segundo a qual se descobriu primeiro, o ego físico-mental (a persona, a máscara), e só depois o Eu racional (o indivíduo). Entretanto, assim como no homem sensorial estava latente o homem intelectual, de modo análogo também no homem sensorial intelectual está latente o homem racional. A auto-realização do homem não consiste na introdução de um elemento novo, inexistente no homem, mas na evolução do Eu central, sempre existente no homem, embora em estado embrionário e ignorado.

A completa auto-realização do homem consiste, pois, na integração total do ego físico-mental no Eu racional. Com essa integração do ego no Eu, o ego alcança a sua suprema perfeição, fazendo nascer, portanto, o homem cósmico, crístico.

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1)- Demócrito (c.460  c.370 a C), que significa escolhido do povo, foi um filósofo grego pré-socrático nascido em Abdera, lembrado principalmente por sua formulação de uma teoria atômica do Universo.

Suas contribuições exatas são difíceis de separar das de seu mentor Leucippus, pois são frequentemente mencionadas juntas em textos. Sua especulação sobre os átomos, tirada de Leucippus, tem uma semelhança passageira e parcial com a compreensão da estrutura atômica do século 19, que levou alguns a considerar Demócrito mais como um cientista do que outros filósofos gregos; no entanto, suas ideias repousavam em bases muito diferentes. Em grande parte, ignorado na antiga Atenas, diz-se que Demócrito foi tão detestado por Platão que este desejou que todos os seus livros fossem queimados. No entanto, ele era bem conhecido por seu colega filósofo Aristóteles, e foi o professor de Protágoras.

Muitos consideram Demócrito o “pai da ciência moderna”, mas infelizmente nenhum de seus escritos sobreviveu; apenas fragmentos são conhecidos de seu vasto corpo de trabalho.

De temperamento espirituoso e alegre, foi chamado de “filósofo que ri”, dizendo que prefere descobrir uma causalidade a se tornar o rei da Pérsia!

Texto revisado, retirado do livro O Espírito da Filosofia Oriental

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