Sol a pico no zênite, calor tropical e lá de longe vem um peregrino exausto à procura de uma sombra. De uma certa distância, ele enxerga uma imensa e frondosa mangueira e se acomoda debaixo dela. Como tudo na natureza é apresentado em abundância, ele notou que a árvore estava repleta de frutos e flores e uma verdadeira algazarra de insetos voadores zunindo as asas: a abelha sugando o mel, borboletas farfalhando as asas, formigas a procura das resinas que exsudavam dos troncos, grilos mordiscando as folhas velhas cheias de fungos, e cigarras, milhares delas talvez, com seu canto ensurdecedor que saem de um tipo de caixa acústica com membranas vibráteis em seus abdomens. Para ele, o descanso da sombra ideal! Descanso, mas nada de silêncio.
Depois de alguns minutos, sem conseguir dar um cochilo reparador, ele encara uma barulhenta cigarra em desespero à procura de uma amante para acasalar e lhe dispara uma indagação ...
— Cri, crii, criii, criiii, criiiii …
— Sempre a mesma cantilena, cigarra? Sempre a mesma? … Quando acabarás com essa fastidiosa chiadeira estridente? ... Quando inventarás uma nota diferente em seu canto? … Quando descobrirás coisa menos monótona? …
— Que dizes, ó homem? Monótona a minha cantilena? E a tua? …
— A minha?
— Sim, a tua cantilena, de todos os dias, de todos os anos, de todos os séculos?
— Que cantilena, cigarra? …
— “Meu amor … Meu amor” … inúmeras vezes tenho visto muitos casais à sombra desta árvore morrendo de amores, e nunca os ouvi dizer outra coisa. Nem sabia que outra melodia houvesse em tua língua. “Meu amor”, dizem eles. “Meu amor”, respondem elas — e nada mais …
— É verdade, cigarra, mas deves saber que nós …
— Pois deves saber também que nós, as cigarras, fazemos a mesma coisa. Eu chamo a minha companheira, lá da outra árvore, e digo-lhe que a amo — e ela de lá me responde que me ama e virá visitar-me …
Escuta, ó homem! Antes que aqui viesses, outros pares de amantes aqui estiveram sentados à sombra desta árvore e das suas ascendentes — e nunca disseram outra coisa senão: Meu amor … Meu amor … Contou-me esta mangueira que, em eras remotíssimas, estivera sentado à sombra das suas ascendentes um casal muito feliz, que Deus havia creado …
— E que dizia esse casal que saíra das mãos de Deus?
— O mesmo que dizes: Meu amor … Meu amor … E creio que está certo. Quando o coração fala não é necessária muita palavra. Basta uma só. E, quando o coração fala muito alto, basta o silêncio para tudo …
Nós, as cigarras, cantamos quando estamos longe uma da outra — e calamos quando estamos perto … Vós, homens, falais até quando estais juntos. Parece que nós amamos mais do que vós, porque calamos melhor …
— Que estranha filosofia, ó cigarra! …, mas, enfim, tens razão, em parte … O amor, quando vasto e profundo, só precisa de uma corda, de um só harpejo para dizer tudo o que sente. E até esta única corda e este simples harpejo acabam em reticência e silêncio, quando o amor atinge o zênite …
— Sabes, ó homem, por que o sol não canta? Por que as flores vivem silenciosas? Por que o azul do céu é mudo? …
— Por que seria cigarra?
— É porque eles amam tanto que qualquer palavra diria menos do que diz o silêncio …
— Que é que eles amam?
— Não sei. Mas amam algo muito amável e que não lhes permite falar, para não perturbar a sinfonia do amor … pois há por cima de nós um Ser invisível que nos torna mudos de amor. Nós cantamos e calamos por amor a Ele …
E a cigarra cantava, cantava, cantava …
A sua cantilena monótona …
A sua grande poesia …
No meio dum silêncio imenso,
O silêncio do amor …
Texto revisado e acrescentado, extraído do livro De Alma Para Alma
No comments:
Post a Comment