Wednesday 6 October 2021

ROMA E O EVANGELHO

Fatos diversos durante a longa história do cristianismo revelaram, por todos aqueles que até hoje o vivenciam, inclusive de membros da própria instituição, a discrepância existente entre o cristianismo dos primeiros séculos - desde as catacumbas, até o seu reconhecimento pelo Édito de Milão, no ano 313 - que oficializou o cristianismo e pôs um termo final a três séculos de perseguição, convidando os discípulos de Jesus a se integrarem na organização do Império Romano e fazendo do cristianismo a religião oficial do Estado; defendida mediante armas, política e dinheiro: armas para matar os inimigos, política para enganar os amigos, dinheiro para comprar e vender consciências.

Essa oficialização decretou o fim de três séculos de cristianismo genuíno, e o princípio de muitos séculos de outra forma de cristianismo: social, político e militar, consequentemente substituindo o Evangelho de Jesus, claro e transparente, pelo evangelho obscuro do clero.

E desse paradoxo, entre O Sermão da Montanha e as perseguições subsequentes aos que insistiam na preservação dos ensinamentos de Jesus, gerou uma série de críticas e escritos, entre eles, a obra original ROMA Y EL EVANGELIO - Espanha, 1874 denunciando veementemente o evangelho do clero com seus mandos e desmandos e dos interesses pessoais dos grupos que tem o controle dessa organização.

A tradutora do texto para o português, em março de 1899, em suas considerações, se refere a um grupo de estudiosos dentro das fileiras da igreja que logrou reconhecer as imperfeições do romanismo em relação às sublimidades contidas no Evangelho de Jesus, pois Roma não é esse Evangelho das verdades eternas. Com isso, resolveram escrever o livro para não caírem na incredulidade, pois não encontram na igreja romana, nenhuma satisfação, rompendo assim, com o fanatismo que proclama a absurda “fé passiva”, e tomaram posse da “fé raciocinada”, a única que pode ser agradável à Onisciência; Onisciência que deu raciocínio ao espírito para lhe ser um instrumento útil no trabalho do seu aperfeiçoamento, que representa a lei da evolução.

O Livro Roma e o Evangelho, que foi compilado por D. José Amigó y Pellícer e seu grupo, contêm os estudos filosófico-religiosos e teórico-práticos feitos pelo Círculo Cristão Espiritista de Lérida, na Espanha, em 1874, que por não poderem conciliar a estreiteza da Igreja de Roma com a largueza da obra traçada por Deus, sentiam que algo de humano precisava ser removido, e que o Espiritismo devia ser o instrumento de tal depuração do Evangelho de Jesus.

Em meados do século XIX desponta na América o movimento conhecido como Espiritualismo Moderno, cujo marco histórico é o famoso caso das Irmãs Fox, em Hydesville, Estado de Nova Iorque: a frequente aparição de uma entidade espiritual que desencadeou a curiosidade e ousadia de se evocar os “mortos” a fim de que se pudesse descortinar e evidenciar a sobrevivência da morte pós-morte. Daí em diante veio a febre das sessões de Mesas Girantes. Essa fenomenologia espiritualista cruza o Atlântico e chega aos grandes centros urbanos da Europa, ganhando contornos cada vez mais sofisticados, culminando com a sistematização da Doutrina Espírita, codificada por Alan Kardec, que, através de suas obras literárias - a começar pelo O Livro dos Espíritos - e sua liderança, exporta da França para todo o mundo, o Espiritismo, ou seja, a terceira revelação de Deus à Humanidade, sob o manto do Espírito de Verdade.

As luzes do Espiritismo chegam às terras espanholas, despertando as mais diversas impressões. Enquanto uns facilmente se encantavam e se convenciam com a novidade, outros - mais comedidos, ou mesmo refratários à nova onda - se postavam com certo interesse frente aos preceitos transformadores e desafiadores da Doutrina Espírita. Dentre estes últimos, podemos assinalar a personalidade que é o autor da presente compilação: D. José Amigó y Pellícer.

Junto com um seleto grupo de amigos, filósofos, clérigos e homens da ciência, instalaram na cidade de Lérida, na Catalunha, Espanha, um grupo para apreciar - e, talvez, desmascarar - o movimento espírita que vinha de Paris. Decidiram então, averiguar, com todo o rigor, as proposições espíritas e, diante da real contingência que se apresentasse, dar um parecer honesto sobre aquelas ideias de “mediunidade”, “conversar com Espíritos”, “reencarnação”, “evolução espiritual” e “salvação pelo autodescobrimento” - ideias estranhas à cultura ocidental e ameaçadoras da ordem religiosa e civil.

A reunião desse grupo de investigadores independentes resultou numa grande especulação: finalmente, aquelas estravagante subversões oriundas da França seriam ridicularizadas pela retórica daquele grupo de notáveis - assim se pensava.

Ocorreu que o grupo - seguindo a lógica - acabou por averiguar a veracidade das manifestações espirituais e naturalmente absorver as excelentes conclusões filosófico-morais do Espiritismo, pelo que, então, em maio de 1873, transformou-se oficialmente em o Círculo Espírita Cristão, do qual D. José Amigó y Pellícer figurava como líder e porta-voz.

O primeiro impacto positivo foi a comprovação da mediunidade, pelo exemplo concreto das experimentações feitos dentro do Círculo; em seguida, examinando os princípios filosóficos e religiosos, terminaram por aclamar que a revelação espírita vinha representar o Evangelho de Jesus, cumprindo assim a promessa do Consolador, enviado do Pai, para ratificar a mensagem cristã, para trazer novas revelações da espiritualidade e, enfim, se fazer permanente entre os homens de boa vontade.

O grupo estava ciente que aquela nova doutrina lhes implicava um rompimento com as tradições primitivas e um antagonismo com os interesses da igreja romana - e, portanto, um desafio pessoal para o grupo: enfrentar a ira reacionária do clero católico, pelo que, tiveram que pagar com a exposição pessoal e as perseguições de todas as ordens. Foram eles banidos do círculo religioso da igreja católica, caluniados, processados judicialmente, expulsos de suas ocupações profissionais, alguns inclusive presos.

Contudo, D. José Amigó y Pellícer e seu grupo não desistiram: seguiram a consciência e sustentaram a convicção espírita até o fim. Em nome do Círculo Espírita de Lérida, lançaram a revista espírita: O Bom Senso, cujo primeiro número foi publicado em 15 de maio de 1875, tendo como título, “Revista de Ciências, Cristianismo, Democracia, Órgão do Livre-Pensamento Cristão”. Esse periódico manteve uma edição mensal até 1886, depois passando para quinzenal, até 1889. Nesse ínterim, a revista sofreu várias sanções: no ano de seu lançamento, ficou dois meses suspensas por determinação do Governador Civil da província, a pedido de apelações do clero católico local. E, para evitar mais suspensões, o grupo fez novas publicações, como A Voz do Bom Senso e Luz na Alma.

Roma e o Evangelho, é ao mesmo tempo um histórico do Círculo Espírita de Lérida e uma mensagem profunda, com uma análise da revelação espírita, dedicada a todos os interessados em novos horizontes do conhecimento e aos anseios de um povo saturado de arcaicos apelos de uma igreja opressora, de uma teologia obscura e de liturgia obsoleta. O livro confere uma leitura proveitosa, ainda mais considerando a possibilidade de conferir mensagens psicográficas de entidades iluminadas como: Maria de Nazaré, Lamennais, Santo Agostinho, João Evangelistas e o próprio codificador do Espiritismo Allan Kardec.

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