Nos três primeiros séculos do Cristianismo das catacumbas, não existiam interpretações do Cristianismo, porque todo cristão experimentava e vivia diretamente essa realidade. Para eles, a invasão do mundo espiritual no mundo material era uma realidade objetiva, pois viviam, subjetivamente em toda a sua plenitude, esse fato.
No início do quarto século, porém, essa experiência de Deus tinha arrefecido de tal maneira que se tornou necessário uma teoria escolástico-teológica sobre essa grande realidade, ou seja, o mesmo que um incêndio pintado em uma tela, em vez de um incêndio real. E esse incêndio artificial da teologia, substitui o incêndio, o alumbramento, a iluminação do Evangelho real de Jesus, e o cristão foi obrigado a crer na realidade desse incêndio irreal na tela teológica, sob pena de ser excomungado da igreja. A fim de dar maior realce à ilusão do incêndio artificial como sendo real, foram invocados todos os recursos da política, do militarismo, da sociologia, da psicologia, do ritualismo externo, e da força bruta, como as cruzadas, inquisições, excomunhões, etc. Entretanto, o incêndio artificial da teologia não se transformou no incêndio real do Evangelho. Os “hereges”, excomungados, passaram a excomungar os que os excomungaram, e com isso, o cosmos evangélico se transformou no caos eclesiástico!
Com Constantino Magno, esse imperador pseudo convertido, surgiram, no evangelho do clero, todas as práticas, ritualismos, dogmas, preceitos, que acabaram se transformando numa espécie de ditadura sobre os corpos e almas dos devotos, e que até hoje continua, pelo menos como ditadura das almas, já que os governos dos estados cristãos modernos negaram aos teólogos eclesiásticos a ditadura dos corpos.
Já no século 16, aparece uma tentativa de interpretação democrática do Cristianismo: cada indivíduo tem o direito de saber por si mesmo, graças a seus inalienáveis direitos humanos, o que é Deus, o Cristo, a vida eterna, sem a necessidade de interrogar o infalível pontífice de uma igreja hierarquizada. Mas a democracia eclesiástica do protestantismo acabou em anarquia religiosa, porque eram pouquíssimos os homens espiritualmente maduros para encontrarem a Deus por si mesmos e em si mesmos. O que encontraram foi o Lúcifer do ego em vez do Espírito de Deus, porque não atingiram o cerne da revelação divina, mas pararam na periferia da interpretação intelectual da Bíblia. Prevaleceu a interpretação teológica dos textos da Bíblia, sobre a experiência mística. E assim, a tentativa da interpretação democrática do Cristianismo falhou, como falhara a interpretação ditatorial.
Aparecem então os ascetas escatológicos, que aliás sempre existiram, ou seja, pessoas que se entregam a práticas espirituais, levando vida contemplativa com mortificação dos sentidos, prevendo o fim do mundo, e que tentaram interpretar o Cristianismo como negação radical da vida e do mundo; quanto mais longe do mundo, tanto mais perto de Deus, e vice-versa. Tentaram transformar o mundo de Deus num mundo sem Deus, ou num Deus sem mundo, num longínquo, desnudo e solitário retiro espiritual, onde o homem desiludido do mundo se pudesse enamorar e inebriar de Deus, em mística solidão e perpétuo êxtase.
Outros, cansados de fracassos, resolveram abrir mão de todas as lucubrações teológicas e contentar-se com um Cristianismo puramente ético-social, horizontal, fragmentado, superficial, pois, para que investigar a origem das nascentes, quando se pode beber das suas águas em qualquer ponto do percurso da torrente? Para esses, basta que o homem seja bom, justo, correto, honesto, caridoso, afável, amigo de todos, para ser um cristão perfeito e integral. Triunfou então a superficialidade da ética humanitária sobre a profundidade da mística divina.
Entretanto, as almas mais sequiosas não abrandaram dentro de si as saudades do misterioso, a nostalgia do Infinito, o silencioso clamor da sua alma naturalmente cristã. Almas insatisfeitas com as águas derivadas da ética cotidiana, subiram às montanhas eternas para saber onde nasciam essas águas, de que rochedos brotavam, puras, sem contaminação. E muitos desses desbravadores do Infinito nunca mais voltaram às planícies do finito; inebriados da nascente divina, esqueceram-se de todos os rios humanos. Outros, porém, continuaram a beber das águas, mais ou menos turvas, dos rios da ética, inexperientes da puríssima água que vem da nascente.
Quando, portanto, aparecerá sobre a face da Terra o homem cósmico? O homem integral, o homem crístico, que dispense interpretação do Cristianismo, pelo fato de o experimentar e viver em toda a sua plenitude e sublimidade?
Ocorre que esse homem já se fez presente, está conosco todos os dias até à consumação dos séculos, cheio de graça e de verdade...
Texto revisado extraído do livro Ídolos ou Ideal?
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