Todas as mensagens de inspiração divina são dificilmente compreensíveis segundo a análise intelectual, como por exemplo, a abordagem que Moisés faz no início do Gêneses, sobre dois fatores aparentemente antagônicos, mas complementares: o sopro de Deus e o sibilo da serpente; ou, em linguagem intuitiva, o espírito do Eu e a inteligência do ego, palavras que têm sido objeto de milênios de controvérsias, suscitando a possibilidade de uma oposição de ideias ou palavras da própria Divindade.
Moisés se serviu do símbolo do “sopro de Deus” para indicar o espírito, e da expressão “sibilo da serpente” para designar a inteligência do homem. Em todos os tempos, a serpente tem se manifestado como símbolo da inteligência; o próprio Jesus se utiliza desse símbolo, quando diz a seus discípulos: “Sede inteligentes como a serpente”.
O espírito e o intelecto são as duas faculdades da natureza humana, que regem todos os eventos da vida. O espírito, ou razão, que a filosofia grega chamava Lógos; e o intelecto, que denominavam Nóos, são, por assim dizer, os dois polos da natureza humana. O intelecto é a manifestação do ego periférico do homem, ao passo que o espírito, ou razão, é a manifestação do seu Eu central.
A sabedoria milenar da Bhagavad Gita diz que o ego é o pior inimigo do Eu, mas o Eu é o melhor amigo do ego. Diz ainda que o ego é um péssimo senhor da vida, mas que é um ótimo servidor.
Paulo de Tarso escreveu aos cristãos de Corinto: “O homem intelectual não compreende as coisas do espírito, que lhe parecem tolice; nem as pode compreender, porque as coisas do espírito só podem ser compreendidas espiritualmente”.
Sendo que o homem não apareceu como homem perfeito, mas sim passível de ser perfeito, em pleno processo evolutivo de se realizar, era necessário que nele atuassem duas forças opostas destinadas a se conciliarem na síntese da sua plenitude.
No homem existem apenas os componentes potenciais para ser um indivíduo integral, e compete a ele mesmo dinamizar a composição harmoniosa e o funcionamento de todo um caráter para estabelecer sua plena harmonia.
Se, segundo a Bhagavad Gita, o ego intelectual do homem é inimigo do seu Eu racional, não haveria a menor esperança de uma síntese harmoniosa; mas, como o Eu racional, é amigo do ego intelectual, pode haver um tratado de paz entre os componentes dessa natureza humana, aparentemente antagônica, mas complementar.
Faz parte do plano cósmico que haja luta na natureza humana, porque sem resistência não há evolução. O homem, por ser uma entidade creadora, tem o poder de se auto realizar.
Teilhard de Chardin conduz a evolução do homem da hilosfera (esfera da matéria inanimada), através da biosfera (esfera da vida), até a noosfera (esfera do pensamento) e futuramente, para a logosfera (esfera da razão). Esta longa evolução ascensional não é possível sem lutas, sem o conflito entre as forças do Eu e do ego, à primeira vista adversas e inconciliáveis, mas cuja finalidade é uma grande síntese, como já observou o teólogo Orígenes de Alexandria, no terceiro século, em sua doutrina que ensina que chegará um tempo em que todas as criaturas livres compartilharão a graça da salvação e da conciliação entre o Eu e o ego.
Quem contempla o drama da humanidade unilateral e parcialmente, não pode deixar de ver no ego intelectual o adversário irreconciliável do Eu espiritual, consequentemente, não é prudente dizer ao homem espiritualmente primitivo que há a possibilidade de uma síntese entre essas duas antíteses.
Até hoje, a vasta maioria dos seres humanos está no nível da noosfera, do ego mental, interessado unicamente pelos objetos externos e indiferente ao sujeito interno; apenas uma pequena elite atingiu a logosfera, que se interessa vivamente pelo Eu central.
Einstein escreveu que o homem intelectual descobre os fatos da natureza, ao passo que o homem racional crea valores no seu próprio interior. O homem intelectual, o erudito, descobre aquilo que já existe, e o de evolução superior realiza em sua consciência valores que ainda não existiam, mas que ele faz existir. Diz esse cientista místico que: “Do mundo dos fatos (que é a ciência) não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores (que é a consciência), porque os valores vêm de outra região”.
Tanto o sopro de Deus como o sibilo da serpente representam um simbolismo emanado das Potências Creadoras, do Infinito, e que compete ao homem realizar a grande síntese entre essas antíteses complementares. É precisamente nesta realização que se baseia a grandiosa tarefa do homem, pois a sua plena autorrealização é a maior obra de todo o Universo.
Texto revisado extraído do livro O HOMEM
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