Apesar de estar distanciado na história do tempo por mais de 15 séculos, Agostinho é um dos mais modernos luminares do Cristianismo; um dos santos mais “humanos”, pois grande é a afinidade do espírito de Agostinho com o de milhares de homens do presente século, tão grande, que lhe dá uma perene modernidade.
Ambrósio, uma das figuras eclesiásticas mais influentes do século IV, talvez, arrebatasse com os fulgores da sua eloquência o espírito do genial Agostinho, mas não atingiu a alma do pagão sensual de Cartago.
Tomás de Aquino, um intelectual de coração afetivo, que se fosse contemporâneo de Agostinho, teria sido para a carne rebelde e a psique revolucionaria do filho de Mónica uma grandiosa esfinge, um fenómeno que se admira, mas que não se compreende e da qual não se espera solução para os Íntimos e dolorosos problemas da vida.
Agostinho tem isto de peculiar: é um homem dotado de extraordinária agudeza de espírito e intensa vibração psíquica... inteligente e sensual, é eminentemente espiritual, metafísico, místico, ou seja, tantos paradoxos numa só personalidade!
A vasta maioria dos homens não conseguem se libertar dos demônios da luxuria, mas nem sempre são vulgares, profanos gozadores, incrédulos do mundo espiritual e divino. Pelo contrário, em virtude de estranho princípio de polarização psíquica, pois quanto mais sentem a tirania da carne, e chafurdam na lama desses prazeres, tanto mais desperta em suas almas, a nostalgia de um mundo de pureza e espiritualidade, na volta ao lar da casa paterna. Parece que este fenômeno se repete todas as vezes que o ardor da carne vai de mãos dadas com o fulgor da inteligência.
É possível que um homem que só haja por instintos, um homem-corpo, seja arrastado pela fonte da luxúria às tenebrosas regiões do materialismo ateu; que não sinta mais na consciência embrutecida a delicada atração da luz divina, a saudade do espírito, porque lhe falta a necessária claridade intelectual para iluminar o vasto subsolo da sua animalidade.
Com o homem inteligente, porém, se dá, em geral, outro fenômeno; quanto mais goza, mais infeliz se sente.
É um filho pródigo que, cercado de manadas humanas a fartar-se nos seus apetites sexuais, não consegue fazer parte desses insensatos; não se joga ao meio dos brutos; não se entusiasma com esse banquete para com ele saciar os seus apetites.
Bem que podia esse infeliz pastor de manadas humanas nivelar-se aos irracionais, saciar os seus desejos do mesmo modo que eles e viver em paz, na pacífica narcose de um total embrutecimento.
Mas... anda por aí estranho mistério, que lhe obstrui essa infeliz felicidade.
A sua inteligência, ergueu uma invencível barreira a esse afundamento no charco, se defendendo da extinção no mundo da carne pecadora, recusando a satisfação da sua fome sensual...
É esta a gloriosa tragédia do homem: em não poder ser um bruto integral.
Não poder matar com o banquete dos irracionais a fome do espírito.
Ter que sentir a fome do desejo e o enjoo do gozo.
Suportar dentro do Eu o doloroso drama da personalidade do ego... Não podendo narcotizar a nostalgia da alma com o entorpecente da luxúria...
O que talvez o homem estupido consiga, o de espírito inteligente não consegue.
A carne ruge enfurecida, com despótica veemência o imperativo dos seus instintos: Goza! goza! goza! ...
Ergue o espírito o facho da inteligência e ilumina as desconhecidas regiões da verdade, onde brilha a legenda: Pensa! pensa! pensa! ...
Ah! se o homem fosse simples animal, encontraria paz e sossego no gozo dos prazeres sensitivos.
Se o homem fosse puro espírito, encontraria definitiva quietude no gozo das puras delícias da verdade.
Mas, como ele é um ser misto, uma ponte entre dois mundos, suspenso entre o céu e a terra, anjo e animal – este pobre ser, sempre atraído e sempre repelido, sempre arrastado à terra pela carne e sempre arrebatado ao céu pelo espírito...
Daí o seu estado de eterna insatisfação, a sua nostálgica inquietude de alma... daí a possibilidade de o homem ser, um Satã da ilusória luxúria hoje, e amanhã um serafim de excelsa espiritualidade... daí este paradoxo dos paradoxos, de poder ser, de alguma forma, um anjo e um demônio ao mesmo tempo.
Os homens de naturezas pacatas, sem paixões violentas nem aspirações extremas, esses eunucos do corpo ou do espírito, não compreendem revolucionários como Agostinho, e os detestam como homens sem religião nem moral - quando muitos desses “serafins satânicos”, essas desarmonias humanas podem possuir mais religião do que certas “almas piedosas” que nunca sentiram em si as tempestades da carne nem os relâmpagos do espírito...
Quando Jesus visitou a casa de Simão, onde se encontravam duas almas, uma, calma como a monotonia de uma planície, e outra, inquieta como um mundo ferido de terremotos e negros precipícios – o espírito de Jesus se simpatizou com a inquietude dinâmica da pecadora de Magdala, e antipatizou com a quietude estática do doutor da lei.
Deste choque da carne e do espírito, desta eterna luta dos abismos de Satã e da excelsitude de Deus, nasce, então, no homem pensante, uma tristeza, um estado psíquico de caráter indefinível, estado que poetas e filósofos inutilmente têm tentado divulgar em fórmulas concretas.
0 homem sente...
0 homem pensa...
E deste sentir e pensar brota uma espécie de querer, de amar, que por toda parte esbarra com as estreitas paredes da própria insuficiência.
O homem se sente convidado pelo sol da liberdade às serenas alturas da pureza - e a cada tentativa fere as asas nas grades férreas da sua prisão material... E, com as asas da alma em chaga viva, recai à tristeza do seu impotente querer...
E se sente então como que exilado de uma pátria que nunca viu, abandonado por um amor que nunca viveu, atraído para um centro e ao mesmo tempo repelido para uma periferia, dilacerado por duas forças antagônicas que na arena de sua alma se digladiam em sangrenta luta de vida e de morte.
Nenhum espírito pensante se sente feliz na lama – mesmo que nessa lama viva uma multidão de sereias.
E surge então este inconcebível absurdo: um homem profundamente sensual pode ao mesmo tempo ser um homem altamente místico. A luz da inteligência converteu a física na metafísica... Aos ardores do coração culminou a sua libido em transcendência erótica...
Agostinho é o representante típico do homem-carne e do homem-espírito, e, nunca talvez tenha existido um pecador tão saudoso de Deus como esse africano; nenhum escravo da luxúria sentiu tão intensamente o anseio das coisas do espírito como esse pagão.
Há entre os chamados “homens mundanos” muito maior número de espíritos sinceros que procuram a Deus e sentem atração por Cristo do que se possa imaginar.
O que mais tarde transformou Agostinho em cristão, nas páginas imortais das “Confissões” e da “Cidade de Deus”, já preexistia em germe na sua alma.
Nenhum homem é no fim da sua evolução o que já não era, virtualmente, no início do processo da sua metamorfose. Quanto maior é o destino do homem, tanto mais fiel ele deve ser a si mesmo e mais firmemente manter a razão em sua personalidade, independentemente de todas as agressões e possíveis transformações do ambiente que possam alterar o fim da sua peregrinação, que é a auto-realização.
O Eu do homem medíocre é como a argila - o Eu do homem refinado é como o cristal. A argila não tem forma definida, assumindo todas as formas do meio, todas as modalidades do recipiente. O cristal, porém, mesmo antes de aparecer em sua forma geométrica, já é o que vai ser: de faces rigorosamente circunscritas, arestas, cor. Ou seja, o corpo futuro do cristal já está pré-determinado pela alma presente nos seus átomos. Cada átomo de argila é argila, e, por isso mesmo, um ser amorfo, indefinido, sem caráter, sem alma, sem “personalidade” - ao passo que cada átomo do cristal já preexistente virtualmente; tem caráter, forma, alma, “personalidade”. A substância da argila é susceptível a toda e qualquer adulteração, já a substância do cristal é de absoluta fidelidade a si mesma.
Todo o homem medíocre é como a argila - todo homem refinado é como o cristal.
Aquele é simples indivíduo - este, poderosa personalidade.
O maior serviço que o homem refinado pode prestar à humanidade é ter a coragem de ser explicitamente o que é implicitamente - ainda que essa fidelidade ao próprio Eu seja quase sempre um “incomodo” para o mundo em que vive, porque este homem é fatalmente um revolucionário, uma exceção da regra, uma anomalia - e o mundo das mediocridades dominantes não tolera semelhante injúria a sua rotina tradicional. O homem refinado não se adapta a esses clichés, não quebra as suas próprias arestas cristalinas por amor a argila amoldável; não arredonda as suas faces; não adultera o seu Eu – diante de tantos crimes cometidos por uma sociedade de homens-argila...
O homem-cristal dificilmente consegue ser um legítimo “ornamento da sociedade”, porque não tem a habilidade de entreter – por muito tempo - um grupo de homens-argila em um salão de distintas damas e elegantes cavalheiros. As suas arestas destoam das banalidades convencionais. O seu caráter retilíneo não se amolda às curvilíneas hipocrisias e bajulações sem as quais não subsiste a sociedade desses homens medíocres.
Entretanto, esse homem-cristal, pavoroso “incomodo” para a sociedade, é o grande alicerce com a habilidade de suportar e construir, do mundo do caos, um mundo de harmonia.
O maior homem-cristal que já apareceu na terra foi pelos homens-argila declarado herege, revolucionário, perigoso e inadaptável. “Fora com ele! crucifica-o!” E tudo isto foi muito real, pura verdade. Nunca existiu maior “herege”, nem espírito mais revolucionário, nem homem mais inadaptável às mentirosas convenções sociais do que Jesus.
E desde aquele dia, o caminho dos homens-cristal está sempre cheio de obstáculos, de patíbulos e fogueiras, de cárceres e de cruzes...
Por mais inverosímil que pareça, Agostinho, depois daquelas vozes misteriosas em Milão, não deixou de ser o que era e o que sempre fora: um homem empolgado por um grande ideal. E, se assim não fosse, o presente século não conheceria o nome do filho de Mônica; porque todo o homem sem um ideal é um homem destinado ao esquecimento e obscuridade, um homem nulo. Ideal é energia, potencialidade. Como pode funcionar uma máquina sem combustível? É muito mais necessário e interessante testemunhar a turbulenta e dramática evolução de uma grande personalidade do que assistir à calma placidez do fim de sua jornada.
Já se foi o tempo em que as biografias dos santos eram peças ascéticas feitas para dar exemplos ao ingênuo leitor, elaboradas com a finalidade de exibir ao público um santo caído do céu, em toda a sua plenitude e perfeição. Esses livros ainda continuam em publicação para essa classe de leitores, mas o homem da vida real não abre essas obras fictícias, ou então fecha o volume no fim do primeiro capítulo, para nunca mais o abrir. Hoje em dia, já existem descrições da vida de santos que apresentam o herói com todas as luzes e sombras, com todas as virtudes e vícios, um verdadeiro indivíduo humano no caminho ascensional da sua autentica personalidade.
Mais vale saber como um profano gozador se tornou um decidido espiritualista, do que ouvir que nasceu santo e realizou tantas e tantas centenas de milagres.
Mais vale para a ascensão espiritual, presenciar a fermentação dinâmica de um caráter em vias de cristalização do que contemplar a estática tranquila de um cristal já perfeitamente formado e de faces definidas.
* * *
Palpita em cada homem um Agostinho - um pagão e um cristão, um pecador e um santo, um sensual e um místico. Ele não é apenas um homem extraordinário. É o símbolo da humanidade - dessa humanidade sem Cristo, e dessa humanidade aos pés do Cristo.
Nele sintetizaram a natureza e a graça da história do gênero humano - e a história íntima de quase todos os seres humanos.
A sua vida é a mais estupenda apoteose do poder da graça. Esta mesma graça que fez de Paulo, um feroz perseguidor de Jesus e que caiu às portas de Damasco se tornando depois o maior apóstolo do Evangelho, fez também do libertino gozador de Cartago o iluminado místico de Hipona.
Para um e outro vale o mesmo lema: “Eu lhe mostrarei quanto vale sofrer pelo nome de Cristo”.
É na escola do sofrimento que se formam os grandes mensageiros da Divindade.
Os heróis do espírito.
Os homens seculares.
Texto extraído do livro Agostinho, edição original integral de 1942
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