Tuesday 24 November 2020

FÉ INCONDICIONAL

Antes de tudo, que quer dizer fé?

Há mais de dois séculos que a cristandade identifica “fé” com “crença” - e esta identificação marcou o início de uma das maiores tragédias espirituais do cristianismo de todos os setores, sobretudo do protestantismo, que se baseia principalmente no princípio de “quem crer será salvo”.

A palavra “fé” vem do termo latino “fides,” portanto fé é uma atitude de fidelidade, harmonia, sintonia. Quando o meu aparelho de rádio está sintonizado com a onda eletrônica emitida pela estação emissora, então o meu rádio capta nitidamente a irradiação - meu rádio tem “fé,” fidelidade, com a estação emissora.

A “crença” nada tem que ver com a fé. A crença é uma opinião vaga, incerta indefinida; assim como quando alguém diz: creio que vai chover, creio que fulano morreu - mas nada disto é certo.

Por que a palavra “fé,” foi substituída pelo vocábulo “crença”? Por que dizemos “eu creio,” em vez de dizermos “eu tenho fé”?

Infelizmente, a palavra latina fides não tem verbo, usando-se um verbo de outro radical, e do latim credere, se formou crercrença.

E com isto perdemos a verdadeira noção da palavra fé, no sentido de fidelidade.

O texto dos Evangelhos do primeiro século foi escrito em grego, e, nesta língua, fides, fé, é pistis, que tem o verbo pisteuein, ter fé. Mas a tradução latina, não encontrando verbo derivado de fides, se viu obrigada a recorrer ao termo vago credere, crer.

Os discípulos de Jesus pediram: Mestre, aumenta a nossa fé, fidelidade, a nossa sintonia, a nossa harmonia com o mundo espiritual; robustece a harmonia entre a nossa consciência humana e a consciência divina. Os discípulos sentem que tem uma ligeira fidelidade com o mundo da realidade divina; mas sentem também a fraqueza e pequenez dessa sua fidelidade.

Então lhes respondeu o Mestre: Se tiverdes fidelidade, genuína e autêntica, mesmo que seja inicialmente débil, porém, genuína e autêntica, então tereis poder sobre todo o mundo material. O que é importante não é a quantidade, mas sim a qualidade da vossa fé. A onipotência do espírito tem poder sobre qualquer potência da matéria. O que é decisivo é a intensidade qualitativa da vossa fé, não a dimensão quantitativa.

E, para lhes mostrar em que consiste essa qualidade intensiva da fé, Jesus busca, não a uma definição abstrata e teórica, mas a uma exemplificação concreta e prática. Faz ver que os atos desinteressados produzem o clima propício para uma atitude espiritual de fé. Quem trabalha para ser recompensado age em nome do ego humano, sempre egoísta; mas quem trabalha sem nenhuma intenção, explícita ou implícita de ser recompensado, esse crea um ambiente propício para a atitude de fé.

Os discípulos pediram: aumenta-nos a fé! E o Mestre lhes faz ver que eles mesmos devem aumentar a sua fé por meio de atos desinteressados.

A fé é uma atitude espiritual do Eu, mas qualquer ato interesseiro do ego mercenário e tirânico, enfraquece o ambiente para o nascimento e crescimento da fé.

“A fé cresce na razão direta em que o homem se liberta do egoísmo.”

A frase sobre “servos inúteis” é um golpe de misericórdia para o inveterado egoísmo humano. Todo o ego se sente “servo útil,” e, de tão útil que se julga, quer ser sempre recompensado por seus atos. O ego nada faz de graça; a zona da graça é do Eu espiritual, que, por isto mesmo, pode trabalhar de graça.

“Por Moisés foi dada a lei (ego), pelo Cristo veio a verdade, veio a graça (Eu)”.

Todo ego mercenário é um ótimo discípulo de Moisés - e um péssimo discípulo do Cristo.

O filósofo francês Henri Bergson diz que todas as igrejas detestam o egoísmo terrestre, mas todas recomendam o egoísmo celeste. As teologias ensinam, geralmente, que o homem deve ser bom, altruísta, virtuoso, com o fim de merecer o céu - e não percebem que também isto é egoísmo, egoísmo póstumo.

O homem realmente liberto e totalmente realizado não espera recompensa alguma pelo fato de ser bom, nem antes nem depois da morte. O homem realmente bom é incondicionalmente bom. Não é bom para ser recompensado com algum céu objetivo, com um prêmio celeste. O homem incondicionalmente bom realiza o reino dos céus dentro de si subjetivamente, sendo esta auto-realização o seu verdadeiro céu. Não espera nenhum céu externo de fora, realiza o seu céu interno de dentro.

Isto não é egoísmo, porque onde o ego foi totalmente superado não há mais egoísmo.

É o que o Mestre chama ser “servo inútil,” sem crédito, sem direito a nenhuma recompensa objetiva.

Immanuel Kant, na sua filosofia analítica censura duramente Baruch de Spinoza pelo fato de ter glorificado o homem incondicionalmente bom; mas o monista judeu de Amsterdam era mais crístico do que o teísta cristão de Königsberg.

A verdadeira fé ou fidelidade com o espírito de Deus, cresce na razão direta da libertação do homem de qualquer espírito mercenário.

Texto revisado, extraído do livro Sabedoria das Parábolas

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