Wednesday 25 November 2020

PASSIVIDADE DINÂMICA

A humanidade foi agraciada com três livros, pequenos em volume, mas imensos em conteúdo, onde estão contidos toda a sabedoria dos séculos: O Evangelho de Jesus, a Bhagavad Gita de Krishna e o Tao, de Lao-Tsé.

Mas nem os cristãos do ocidente e nem os iogues do oriente compreenderam o verdadeiro sentido desses livros sacros, e deram a eles interpretações tão imperfeitas como seus próprios intérpretes.

O Ocidente cristão está constantemente trabalhando agitado para realizar seus egos, mesmo no nível espiritual, e julga com isto o espírito do Evangelho, quando na vida do próprio Jesus, não há vestígio dessa agitação.

O oriental, por seu turno, convencido de que toda a atividade objetiva é enganadora e ego-contaminada, resolveu isolar-se em perpétua passividade e identificar-se com as verdades da Divindade Absoluta, longe das ilusões da vida, da força criativa que se manifesta externamente. (1)

E assim temos a humanidade em duas metades justapostas, sem nenhum Todo orgânico.

Nem o ocidente e nem o oriente estão com a verdade integral, que não é atividade e nem passividade, mas sim, passividade dinâmica ou atividade em repouso.

Ultimamente, o ocidente foi invadido por uma das práticas orientais, da ioga da Índia em particular, e muitos cristãos desiludidos do cristianismo, julgam ter descoberto, finalmente, o elixir da verdade, que as suas igrejas não lhe souberam dar.

Entretanto, tudo faz crer que não captaram o sentido real da Bhagavad Gita, e do Tao, como não compreenderam o espírito cósmico do Evangelho. Contentam-se com certas práticas periféricas de ioga sem atingirem sua essência interna.

Evangelho não proclama a redenção do homem por determinadas atividades externas - e a Bhagavad Gita e o Tao não recomendam perfeição pela inatividade. Todos afirmam algo incomparavelmente mais profundo e fecundo, que só uns poucos, até agora, puderam compreender e viver. E, neste aspecto, os livros sacros do oriente são mais explícitos do que os do ocidente.

É importante deixar claro em dois tópicos característicos, essa verdade que forma a quintessência tanto do Evangelho como da Bhagavad Gita e do Tao.

“Trabalha intensamente - diz a Sublime Canção da Índia - e renúncia a cada momento aos frutos do teu trabalho!” Lao-Tsé em seus escritos sempre se refere ao “agir pelo não-agir,” da “passividade dinâmica”.

E Jesus recomenda a seus discípulos: “Quando tiverdes feito tudo o que devíeis fazer, dizei: Somos servos inúteis; cumprimos a nossa obrigação; e nenhuma recompensa merecemos por isto”.

Em síntese, ambos mandam trabalhar intensamente, realizar todas as obras do plano objetivo que devem ser realizadas - e ambos exigem que o homem não trabalhe por causa de qualquer espécie de fruto, resultado ou prêmio, mas por causa do próprio trabalho, considerado como missão sagrada que lhe foi confiada na Terra. Quem depende dos frutos do seu trabalho depende de algo que não depende dele - e isso é horrível escravidão. O homem profano depende de sucesso ou insucesso, de louvores ou censuras, de vivas ou de vaias - mas nada disso depende dele, e sim de circunstâncias externas, que estão além do alcance da sua vontade, independente do seu querer ou não-querer.

É evidente portanto, que um homem que depende de algo que não depende dele é escravo e está sempre em vésperas de infelicidade, embora essa infelicidade se ache ainda em estado de incubação; a qualquer momento pode acontecer a eclosão, uma vez que ninguém é senhor das adversidades da natureza ou da perversidade dos homens.

Logo, felicidade que depende de algo que não depende de mim é infelicidade, latente ou manifesta.

Os livros sacros que visam à verdadeira e sólida felicidade do homem, exigem que o homem não trabalhe por causa de algo que não está sob seu controle, mas sim, por causa daquilo cujo controle está inteiramente em seu poder - que é o próprio trabalho, realizado com amor, alegria e entusiasmo, com ou sem resultados, em forma de dinheiro, louvores, gratidão, reconhecimento, admiração ou sucessos de qualquer espécie.

O ego tirânico quer esses frutos externos - o Eu divino, essencialmente desinteressado e livre visa somente ao próprio trabalho feito com pureza de intenção e amor, porque essa vontade interna faz parte do próprio Eu, e quando positiva leva o homem ao seu progressivo aperfeiçoamento e definitiva auto-realização.

O ego mercenário e luciférico só conhece realizações externas - o nosso Eu livre e crístico quer somente auto-realização. O ego é cego para a realidade do Ser, e somente enxerga a quantidade de bens materiais que consegue - o Eu procura melhorar o seu íntimo Ser, na certeza de que os bens materiais não lhe faltarão na medida necessária; pois compreendeu a filosofia cósmica das palavras de Jesus; “Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça (a perfeição do ser) - e todas as outras coisas (os bens materiais) vos serão dadas de acréscimo.” “Portanto, qual é a vantagem do homem em ganhar o mundo inteiro (as quantidades externas) se sofrer prejuízo em sua própria alma (a qualidade interna)?”

A única coisa que compete ao homem fazer é realizar-se a si mesmo, sua qualidade espiritual - e Deus se encarregará de realizar as coisas das quantidades materiais.

O que os livros sacros recomendam ou proíbem não é atividade e nem passividade, mas absoluto desapego, renúncia total e permanente, quer na atividade, quer na passividade. Na vida presente, o homem deve ser ativo para cumprir a sua missão terrestre de sócio creador do mundo e sócio redentor da humanidade, sendo ativo com desapego e realizando qualquer trabalho honesto com 100% de perfeição, amor e entusiasmo.

Os livros sacros do oriente falam muito em culpa, essa substância negativa oriunda do apego aos frutos do trabalho, esse venenoso resíduo que o ego deixa no homem por ele escravizado. Não é a atividade em si que produz a culpa, mas sim a falsa postura com que a atividade é realizada. Essa postura negativa é que deve ser evitada, e não a atividade em si. Os mestres espirituais não convidam o homem à inércia e passividade, como fatos externos e objetivos - o que importa é a postura de liberdade ou de escravidão com que o homem é ativo ou passivo - e é dever do homem em evolução ser intensamente ativo com plena liberdade, traçar a linha reta de amor e pureza através de todos os tortuosos caminhos dos ciclos da vida, de atividade objetiva e profissional.

Ser escravizadamente ativo, como o profano, é fácil.

Ser livremente passivo, como o místico, não é difícil.

Ser livremente ativo, como o homem cósmico, isto é glorioso.

Pois é precisamente para esta atividade com liberdade que nos convidam, sem cessar, os grandes livros sacros e os nossos verdadeiros mestres e guias rumo ao infinito.

Muitos místicos, ou pseudomísticos, para se preservarem do fardo inerente a todas as coisas que o ego produz, resolveram impor silêncio e inércia a esse ego luciférico - porque não compreenderam que há uma redenção desse fardo; e quem nos redime do pecado do ego, é precisamente o Eu divino, esse Eu crístico no homem que não quer saber de prêmio ou recompensa objetiva, mas se rejubila com a grandiosa missão de melhorar o mundo e a humanidade; e isto é suficiente “recompensa interna” para renunciar a todas as pseudo recompensas externas.

É nesse aspecto, da renúncia a todas as pseudo recompensas externas, que o homem profano encontra seus maiores problemas. Por que trabalhar, ele pergunta, se não é por causa dos frutos ou resultados que espero de meu trabalho? Que outro estímulo eu teria para realizar um trabalho difícil e prolongado, se não me animasse diariamente, a cada momento, da perspectiva de bons resultados, mesmo que sejam distantes? A presença ou a aproximação dos resultados me anima no meio da luta; a ausência ou medo de frustração acabaria por me desanimar, cedo ou tarde ...

Com estas palavras, a pessoa inexperiente prova a completa ignorância sobre si mesma; identificando-se com o seu ego profano, e nada sabe do seu Eu sagrado; enxerga todas as periferias físico-mentais-emocionais, e nada percebe do seu centro espiritual cósmico.

Portanto, a solução do grande problema da vida consiste no fator compreensão, ou seja, autoconhecimento, como diziam os antigos filósofos da Grécia: “Homem, conhece-te a ti mesmo!” Mas o homem, até hoje, não se conhece a si mesmo, o homem, esse desconhecido ... Persiste na sua ignorância de se identificar com as periferias que ele tem, e de fechar os olhos para o centro que ele é. Inclusive, chega ao absurdo de escrever livros para decidir se ele tem uma alma - quando ele é essa alma, esse Eu divino, a alma que tem um corpo, o Eu que tem esse ego como seu instrumento.

O ego, diz a filosofia oriental, é o pior inimigo do Eu; mas o Eu é o melhor amigo do ego.

O ego é inimigo porque é ignorante - pois a inimizade vem da ignorância.

O Eu é amigo porque é sábio - amizade é filha da sabedoria.

Enquanto o homem ignora a si mesmo não há solução para o problema fundamental da humanidade. Mas, como conduzir o homem da ignorância para a sabedoria? Da incompreensão para a compreensão? Da inexperiência para a experiência de si mesmo?

Essa experiência de si mesmo não é fruto de estudo de psicanálise, porque esta não ultrapassa as fronteiras do ego. Algum fator ultra ego é necessário para que o homem cruze a misteriosa fronteira entre o que ele tem e o que ele é. Esse grande EU SOU não é ego-manufaturado, não é produto de análises intelectuais, não é creado pelo consciente, porque é o superconsciente no homem - e o menor não pode produzir o maior, o efeito não é maior que a sua causa. Portanto, é matematicamente certo que o ego, com toda a sua esperteza, não pode produzir a compreensão da verdade sobre a natureza do Eu.

Essa compreensão deve vir de uma fonte maior - deve vir do próprio Infinito, do Universo, do Todo, que está dormente no homem, mas que é do homem, e no entanto ele apenas experimenta essa imanência central em si, numa forma periférica, transcendente; algum dia, o verdadeiro iniciado saberá que o Infinito Cósmico é idêntico ao EU SOU humano – “eu e o Pai somos um” ...

Mas para que esta grande revelação aconteça ao homem, ele deve crear um ambiente propício ao redor e dentro de si mesmo; pois, segundo as leis do Universo, “quando o discípulo está pronto o Mestre aparece” - quando o homem-ego está pronto o homem-Eu se lhe revela.

E isto é auto-realização. E em linguagem teológica se diz: “Quando o homem tem fé, Deus lhe dá a graça.”

Estar alerta, fé, não são, causa do advento da verdade, da graça - mas são condição necessária e indispensável para que a causa, o Infinito, possa agir sobre o ser finito. Quem não abre uma janela não terá luz solar na sala; quem não sintoniza o seu canal com a fonte, não recebe a transmissão - mas isso não prova que janela aberta ou canal ligado sejam causadores da luz ou da transmissão; prova apenas que são veículos ou condições necessárias para que a causa (o sol, a fonte) possa agir.

Esse ambiente propício que o homem deve crear ao redor e dentro de si inclui certos fatores conhecidos, como solidão, silêncio, introspecção, meditação, ego-esvaziamento e anseio de plenificação cósmica; essa atitude propícia ao autoconhecimento e à auto-realização é algo como um silencioso clamor da alma, uma dolorosa nostalgia do finito pelo Infinito, uma imensa auscultação do peregrino telúrico para captar o vazio eco de uma Voz distante, mais adivinhada do que ouvida. Na sua vida ética e social o candidato à inspiração divina deve viver como se já fosse agraciado por essa revelação; pois, a vivência ética preludia a experiência mística, e esta, uma vez realizada, transforma totalmente a vivência ética, fazendo compreender a verdade do grande paradoxo: “Pois o meu jugo é suave e meu peso é leve” ...

Quando o homem, através do autoconhecimento e da auto-realização, se livrar totalmente do impuro desejo de gozar os frutos do seu trabalho; quando já não é mau para não cair no inferno, nem é bom para entrar no céu; quando ele compreende que é embaixador da Nação Cósmica aqui na Terra para continuar a creação do mundo e a redenção da humanidade, dentro do espírito desinteressado dos seus divinos Mandantes - pela primeira vez então, ele se sente plenamente liberto de todas as suas necessidades e paixões, e adquire perfeita autonomia sobre a sua vida terrestre e seu destino eterno.

E é então, e somente então é que o homem começa a exercer uma atividade 100% dinâmica e benéfica no seio do gênero humano.

Esta é a quintessência dos livros sacros da humanidade.

___________________

(1)- Em realidade, já antes do período colonial, no século XVII, e quando a Inglaterra dominava o comércio internacional, por intermédio da infame Companhia das Índias Ocidentais, na busca do lucro fácil do capitalismo emergente, a Índia veio perdendo gradativamente o espírito metafísico do isolamento e meditação, contaminada que foi pelo espírito da ganância. Paul Brunton, em um de seus livros, já advertia, no princípio do XX, que esse espírito havia se perdido.

Hoje, a Índia é uma poderosa potência atômica, um dos países que mais importa armas de destruição, mantém satélites em órbita ao redor da Terra, manda foguetes para pesquisar a Lua e inclusive um que orbita ao redor de Marte. No entanto, a vasta maioria de seus quase 1,5 bilhão de habitantes não tem o privilégio de redes de esgoto e saneamento; as favelas e o lixo ao redor das grandes cidades são um insulto á condição humana, e onde ainda o sistema de castas continua arraigado no seio dessa chamada civilização.

E fica a pergunta: quando a Índia voltará à visão cósmica da Bhagavad Gita? ...

Texto revisado, extraído do livro Roteiro Cósmico

No comments:

Post a Comment