A mesma seiva vital que flui através do tronco de uma árvore flui também através de todos os ramos da mesma. Não há na árvore dois princípios vitais, um no tronco e outro nos ramos. A identidade da vida é absoluta; mas diferente e variada é a sua manifestação. Essa identidade da vida, contudo, não determina a igualdade da função do tronco e dos ramos; há autonomia individual em todos. O tronco sustenta; dos ramos brotam as folhas, flores e frutos, mas a seiva que os alimenta é a mesma.
E é precisamente aqui que principia o grande mistério da liberdade: o homem, como um indivíduo consciente e livre pode agir contrariamente ao princípio universal (vital) da causa que o creou, pois a unidade da essência permite a diversidade funcional das existências, o que significa que o ramo (o homem) pode, apesar de ser parte da árvore (a essência Universal), ser fecundo ou ser estéril. Tudo vai depender do seu livre-arbítrio.
Enquanto se permanecer apenas no símbolo material da árvore, não há essa possibilidade de divergência entre o tronco e os ramos, porque, na árvore, não há autonomia individual; ela é um todo, para apenas uma função determinada, uma vez que os ramos são simples prolongamentos do tronco.
Quando, porém, se passar para o simbolizado espiritual, surge a possibilidade da diversidade entre o tronco e os ramos, porque no mundo dos seres conscientes e livres há suficiente autonomia de agir; o ramo pode opor-se à atuação da seiva vital que circula através do tronco. O homem pode ser pecador sem que o elemento divino deixe de existir nele, porque o pecado não consiste na ausência de Deus, que, sendo onipresente, nunca está ausente de parte alguma; o pecado consiste na ignorância que o homem tem e mantém da presença de Deus. Se Deus estivesse ausente de um único átomo, esse átomo deixaria de existir, ou Deus deixaria de ser Deus, por não ser uma Realidade onipresente. Um Deus que não seja onipresente não é Deus, porque é limitado e finito.
A vida divina está em todas as creaturas. No momento em que essa vida divina se identificasse totalmente com Deus, ela deixaria de ser algo individual, distinto de Deus; seria um puríssimo nada no plano do “existir” individual, embora continuasse na zona do “ser” universal. Tudo quanto existe individualmente só existe em virtude da imanência do eterno Ser. Nada pode existir sem que o Ser o penetre.
É possível portanto que o homem seja pecador, a despeito da imanência de Deus nele. O pecado não consiste em que Deus esteja ausente do pecador, mas no fato de que este ignore voluntariamente essa presença divina e viva como se Deus estivesse ausente.
Quando alguém está sob a luz solar e de olhos abertos, o sol está presente a ele e ele está presente ao sol; quando fecha os olhos, o sol continua presente a ele, mas esse homem está ausente do sol – isto é, objetivamente presente, porém subjetivamente ausente.
O homem que peca ausenta-se subjetivamente de Deus, ainda que objetivamente continue presente a Deus, ao Deus sempre presente a ele.
Essa ausência subjetiva é que é o pecado.
Os seres não-humanos, aparentemente, não possuem consciência suficiente para se ausentarem subjetivamente de Deus; por isto, não podem pecar.
Os seres supra-humanos, de elevada consciência espiritual, não pecam, porque a sua alta sapiência não lhes permite ausentarem-se de Deus subjetivamente; a sua consciência intensamente iluminada os estabilizou definitivamente na verdade.
A seiva vital da “árvore” do Cristo, quando circula livremente nos seus “ramos” humanos, produz neles fecundidade crística. E, para que produzam fruto cada vez mais abundante, esses ramos são purificados, ou podados. A poda consiste na eliminação de uma parte dos ramos; dessa forma, há uma concentração mais intensa da seiva do tronco em poucos ramos, que então produzem frutos mais vigorosos. A poda faz com que o ramo “chore”, porque ela é uma espécie de disciplina dolorosa. Todo homem que pratica disciplina espiritual sabe quão difícil e dolorosa ela é, pelo menos no princípio. É bem uma “poda”. O homem disciplinado se priva espontaneamente de muitas coisas agradáveis em que os indisciplinados se comprazem. Enquanto outros se derramam pelos divertimentos fáceis e pelas coisas supérfluas da sociedade, o homem disciplinado retira-se, muitas vezes, a uma intensa concentração mental ou meditação espiritual. Aos olhos dos profanos esse homem é digno de lástima; sua vida parece pobreza e monotonia; na verdade, porém, a vida disciplinada é riqueza e harmonia. A verdadeira felicidade não consiste na quantidade dos prazeres que o homem goze, mas na qualidade do gozo que ele saboreie.
Esta sabedoria, todavia, não é acessível a pessoas que não a tenham saboreado em si mesmas; só pode saber o gosto de uma iguaria quem a experimenta. Esse sabor, porém, não vem de uma teoria, mas da prática ou da experiência.
Quando alguém produz fruto pela vivência íntima com a divina seiva vital do espírito do Cristo, será purificado cada vez mais das impurezas do seu ego tirânico; e esse processo de aperfeiçoamento é dolorosamente suave; o que nele há de amargo pertence ao ego físico-mental, à “persona” do homem, sua máscara; o que nele há de suave vem do Eu espiritual, da verdadeira individualidade do homem.
Nenhum homem, depois de gozar da amarga suavidade da disciplina espiritual, estaria disposto a trocar essa vivência pela vida de algum homem profano a nadar num oceano de prazeres. Uma minhoca é feliz quando tem bastante húmus para digerir. Um cavalo é feliz quando tem bastante capim para comer. Uma criança é feliz quando recebe muitos brinquedos para se divertir. A plenificação da potencialidade de um ser é a sua felicidade; se essa potência é pequena, também a felicidade é pequena. Aumentando a potencialidade, cresce a possibilidade de uma felicidade maior. Mas, enquanto não for dinamizada a medida da potência, há no homem um senso de insatisfação, até que essa medida se dinamize. E, com essa dinamização, cresce novamente a potencialidade.
Graças à sua cegueira, o homem profano vive numa horrorosa felicidade.
O principiante das coisas do espirito, que adivinha uma plenitude que se pode possuir, mas ainda não possuída, entra numa zona de inquietude metafísica, que é uma gloriosa infelicidade.
O iniciado, porém, depois de sintonizar o seu humilde querer com o glorioso querer cósmico, sente-se empolgado por uma abundante felicidade.
Texto revisado, extraído do livro O Triunfo da Vida sobre a Morte, págs. 80 a 85
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