Wednesday 24 February 2021

BEM AVENTURADOS ...

Quem lê a bem-aventurança que afirma que felizes são os que sofrem perseguição e difamação de toda espécie porque deles é o Reino dos Céus, aqui e agora, e não apenas no futuro, do ponto de vista do ego profano, tem a impressão de que a mensagem de Jesus é sadista e escapista.

Sendo que o Reino dos Céus está dentro do homem, no seu Eu divino consciente e realizado, parece que a auto-realização é necessariamente incompatível com a realização do ego. Parece que o homem não pode ser espiritualmente bom sem ser ao mesmo tempo mártir e vítima de sua própria espiritualidade. E, para justificar este conceito, a literatura dos últimos dois mil anos, apresenta a ideia de que Jesus foi o rei dos sofredores, o homem das dores, o mártir por excelência. Ocorre que a humanidade chamada cristã, condescendente e ajustada aos ensinamentos do clero organizado, foi educada na ideia de que não se pode ser feliz aqui na terra e nem mesmo nos céus, ou vice-versa; que os que são felizes aqui, são necessariamente felizes no céu.

Mas é verdade que Jesus foi o rei dos sofredores?

Obviamente que não, porém morais e psíquicos sim! Os seus sofrimentos em 33 anos de existência terrestre, não abrangem 15 horas, desde a quinta-feira à noite, quando do beijo da traição, até à sexta feira de tarde. Os seus sofrimentos físicos talvez não cheguem a 3 horas. E todos estes sofrimentos foram livremente aceitos, pois Jesus não se revoltou contra a sentença, afirmando que: “Não devia o Cristo sofrer tudo isto para assim entrar em sua glória?” E se ele não tivesse nascido, vivido, trazido a mensagem, a crucificação, como ficariam as escrituras que a humanidade recebeu, seriam elas possíveis de existir?

Será que já existiu sobre a face da terra um homem que vivesse 33 anos e sofresse tão pouco? Mas, e os sofrimentos morais e psíquicos de Jesus? A incompreensão do povo e dos seus próprios discípulos? A traição de Judas, a negação de Pedro e o abandono de quase todos? Mas, no entanto, ele sabia que sua encarnação foi um mergulho nas espessas trevas de um mundo extremamente materialista.

Quando se sofre livremente, por amor a um grande ideal, o sofrimento perde o seu amargor; amargo é somente o sofrimento quando sofrido estupidamente, sem se saber porque, sem nenhuma finalidade superior. Todo sofrimento físico ou moral, realizado à luz de uma grande missão, de um ideal sublime, é uma amargura adocicada, é um “jugo suave” e um “peso leve”.

E foi exatamente nesse sentido que Jesus proclamou felizes os que sofrem perseguição por causa da verdade, precisamente porque deles é o Reino dos Céus que está no interior de todo homem.

O Reino dos Céus não se acha em nenhuma região distante e futura; a presença deste Reino é um fato; não é objeto de uma aquisição após morte; mas é a íntima natureza de todo homem. Não se quer dizer que o Reino de Deus esteja presente apenas em alguns homens e ausente em outros - ocorre que alguns tem a consciência dessa presença, e em outros a de viverem na inconsciência dessa presença. Para alguns homens o Reino de Deus é ainda “uma luz debaixo do alqueire”, para outros já é “uma luz no alto do candelabro” da sua consciência espiritual.

“Estamos aqui neste mundo, para descobrir dentro de nós mesmos, essa dimensão (o Reino), que é muito mais profunda que nossos pensamentos”, afirma Eckhart Tolle - espiritualista alemão moderno, professor e autor de livros - sendo o Céu, a consciência liberada pela verdade. Só quando houver um cambio radical no nível de consciência, quando vislumbrar e materializar essa dimensão, é que o homem se integrará no Todo Cósmico. E os que ainda não conscientizaram a presença dessa luz do Reino dentro de si mesmos – que depende unicamente da reta ou falsa atitude do livre arbítrio em cada um - continuam sofrendo, pois, essa luz permanece ausente como se tudo fosse treva espessa.

O ego, quando está repleto de gozos e satisfações, dificilmente se interessa pelas coisas do seu Eu espiritual. O desejo de algo espiritual só desperta no homem quando lhe faltam os objetos do ego. O homem-ego só conhece os objetivos da vida, mas ignora a sua razão de ser. Enquanto os objetivos da vida estão presentes em abundância, o homem profano procura a sua satisfação e felicidade nesses objetos, e dificilmente descobre a sua razão de ser, que é o seu Eu interno.

A parábola dos convidados à festa nupcial, é uma ilustração típica dessa atitude: os homens profanos, convidados em primeiro lugar, não comparecem à festa nupcial do Reino de Deus; um desses convidados comprou uma pequena fazenda e tinha que vê-la e cultiva-la; outro comprou uma junta de bois e tinha que experimenta-los; o terceiro havia casado e tinha festa e baile em casa. Todos eles, de tão satisfeitos com os objetos, as materialidades da vida, não sentiam a fome de uma razão de ser superior. Os seus teres e fazeres eclipsaram totalmente o seu ser. Não atingiram a plenitude espiritual por causa das suas pseudo plenitudes materiais, que eram as suas grandes vacuidades.

Então, o anfitrião da festa nupcial convidou os pobres, os aleijados, os surdos, todos aqueles que não estavam saturados com os objetivos da vida, e estes compreenderam a razão de ser da sua existência superior, e compareceram à solenidade do Reino de Deus, pelo autoconhecimento e pela auto-realização.

A transição do ego consciência para a Cristo-consciência, implica, quase sempre, em sofrimento, em “caminho estreito e porta apertada”; mas, uma vez conseguida a Cristo-consciência, a vida do homem espiritual pode tornar-se um “jugo suave” e um “peso leve”.

--- Para os que estão a se realizar, a espiritualidade é um sofrimento.

--- Para os realizados, é um gozo.

infeliz satisfação do profano deve passar pela feliz insatisfação do místico - a fim de poder, um dia, culminar na feliz satisfação do homem cósmico.

Todos os Mestres da vida espiritual quando falam a homens espiritualmente analfabetos, como é a maioria da humanidade, insistem na necessidade da renúncia, do sacrifício, da abnegação. Insistem na transição do homem profano para o homem místico - e pouco se referem ao homem cósmico - pois para eles, a pedagogia tem de preceder à metafisica, já que os analfabetos da espiritualidade, não conseguem digerir as pérolas da sabedoria mística e muito menos, compreender o que é um homem cósmico. Se os Mestres mostrassem a compatibilidade da felicidade espiritual com os gozos externos, que aconteceria? A imensa maioria dos profanos se julgaria pertencente à elite dos homens cósmicos; substituiriam a libertação real por uma pseudo libertação ilusória, gozando os prazeres da vida, na ilusão de serem homens cósmicos, de já terem superado o doloroso período ascético-místico.

O profano, ignorante e arrogante, facilmente se convence de que o seu primitivismo espiritual é perfeição, e que renúncia, sacrifício, práticas de devoção e meditação religiosa, são estágios superados. O mais difícil dos doentes é aquele que considera como saúde a sua própria enfermidade. Os grandes Mestres sabiam disto, e por isto insistiam sempre numa atitude de renúncia e sacrifício: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo”. Só depois de renunciar corajosamente a tudo, é que o homem pode possuir algo sem perigo - pode até mesmo possuir tudo sem ser possuído por nada. Mas estes poucos - onde estão?

--- Mahatma Gandhi diz: “Homem, renuncia a tudo, entrega tudo a Deus - e depois recebe-o de volta, purificado, das mãos de Deus”.

O homem-ego não é sincero consigo mesmo; e a expressão bíblica "Omnis homo mendax" (Todo homem é mentiroso) é pura verdade: o homem tem a inextirpável mania de se iludir a si mesmo, de se julgar autorrealizado, quando ainda nem mesmo começou o abc da sua iniciação. Em vez de soletrar o abc na escola primária, procura matricular-se na universidade do espírito.

Diante dessa constante atitude de falta de sinceridade, do triste hábito das mentiras, auto decepção, os grandes Mestres devem falar como falam, chamar felizes os que sofrem de perseguição e difamação por causa da verdade. Só assim eles podem ensinar aos analfabetos do espírito a aprenderem os rudimentos da espiritualidade.

Ninguém pode passar do primeiro grau para o terceiro, sem antes ter passado pelo segundo grau. Ninguém pode passar do mundo da consciência Cristo-cósmica, sem ter passado pelo mundo da mística ascética.

Segundo todos os Mestres, o caminho ascensional passa pelos estágios da purificação, da iluminação e da união. Se o profano impuro não se purificar das suas impurezas, não pode ser iluminado pela mística, nem unido pela consciência cósmica. É esta a matemática inexorável das Leis Cósmicas. É esta a lógica retilínea da libertação pela verdade.

É imensa a legião dos homens profanos que se julgam cósmicos - porque não passaram ainda pelo noviciado da mística. E quanto mais o homem passar por esse noviciado místico-ascético, tanto mais esperança ele tem um dia de entrar no mundo glorioso da consciência Cósmica do Cristo.

Texto revisado e ampliado extraído do livro Sabedoria das Parábolas

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