Monday 22 February 2021

GANDHI, O APÓSTOLO DA NÃO VIOLÊNCIA

“Homem! Renuncie ao mundo, dê-o a Deus! E então receba de volta, purificado, das mãos de Deus!” Gandhi

 

O homem é um ser social, e, portanto, político por sua própria natureza, inerente ao seu contexto enquanto ser intelectual, filosófico e analítico. E dentro desse contexto de um ser social, a política, em particular, em sua consciência, fica restrita aos seus valores éticos e morais, resultado de sua vivência na sociedade em que se desenvolveu, e como são raros os seres humanos que nos dias de hoje, vivem em cavernas, a sociedade humana vive a política. A princípio, imposta por motivos de consciência, não pode se ver nenhum mal em fazer política, pois é um valor humano.

No entanto, os dramas e dilemas criados nesse contexto aparecem, quando os motivos de consciência estão intimamente ligados ao livre arbítrio de fazer da política, um jogo de interesses pessoais, de grupos ou partidos, e por isso mesmo, egoísta. E esse efeito é de caráter desastroso, levando a conflitos e fora do contexto amplo para o bem-estar da comunidade humana como um todo, colocando ainda mais em risco a democracia que ainda se sustenta frágil, falsa, fragmentada e sobre muletas, nas sociedades chamadas de democráticas em todos os países nos tempos modernos.

No meio desse caos moral e ético onde se sustenta essa capenga democracia, aparece no cenário político do século XX, um homem aparentando uma vida de asceta, quase raquítico, humilde e seminu, que muda os alicerces do pensamento político e lança um brado de alerta para as futuras gerações! Sim... para as futuras gerações talvez, pois a vasta maioria dos políticos da atualidade ainda se rastejam sobre as planícies estéreis da mediocridade, se afundando no pântano da lama criada pelos interesses pessoais escusos e suas afiliações em grupos de poder não menos honestos tentando esconder suas ardilosas manobras de corrupção. Utilizando a política, apenas no jogo sujo que com ela se pode fazer, sem atentar para os princípios, da causa primária, dos preceitos morais e éticos em que se devem basear as relações humanas em sua total integralidade, alheia à condição social, consciência, caráter, religião, etnia e geografia.

Dele, assim se expressa Albert Einstein, esse famoso cientista universal, místico, visionário, humanista, pacifista: “Um condutor de seu povo, não apoiado em qualquer autoridade externa; um político cuja vitória não se baseia em astúcias nem técnicas de política profissional, mas unicamente na convicção dinâmica da sua personalidade; um homem de sabedoria e humildade dotado de invencível perseverança, que empenha todas as suas forças para garantir a seu povo uma sorte melhor; um homem que enfrenta a brutalidade da Inglaterra com a dignidade de um homem simples, e por isso se tornou um homem superior - futuras gerações dificilmente compreenderão que tenha vivido na terra, em carne e osso, um homem como este... o maior homem de nosso século.” E acrescenta: “Acredito que as opiniões de Gandhi foram as mais esclarecidas de todos os políticos do nosso tempo. Devemos nos esforçar para fazer as coisas em seu espírito: não usar de violência na luta pela nossa causa, mas pela não participação em qualquer coisa que se acredite ser má.”

Mohandas Karamchand Gandhi, o paradoxo místico-político, foi um advogado indiano, nacionalista anticolonial e político ético, que insistentemente usou de resistência não-violenta para liderar a bem-sucedida campanha pela independência da Índia do domínio britânico e, por sua vez, inspirando movimentos por direitos civis e liberdade em todo o mundo, tendo como um de seus maiores discípulos, Martin Luther King Jr.

A humanidade conhece alguns místicos e muitos políticos - mas um místico político, ou um político místico, é coisa muito estranha e, à primeira vista, impossível. O místico trata das coisas de Deus e do mundo espiritual; o político se interessa pelas coisas dos homens e deste mundo material. E será possível que, dentro do mesmo indivíduo, se harmonizam esses dois mundos, tão distantes e, aparentemente, tão antagônicos? Se o monismo cósmico não fosse um postulado da lógica; se não compreendêssemos que só pode haver um único princípio eterno de todas as coisas, sejam elas do nível material, sejam do nível espiritual – então, se pode professar o dualismo zoroastriano e negar a compatibilidade de elementos tão incompatíveis como a mística e a política.

De tempos em tempos, aparece um homem de vastíssimos espaços internos, onde todo um sistema planetário pode girar livremente, sem colisões nem catástrofes, em torno de um único sol, que tudo ilumina e vitaliza. No interior desse sistema se forma uma tensão dinâmica que, para manter o equilíbrio, tem de intensificar a sua força centrípeta na razão direta da sua força centrífuga, a fim de estabelece um cosmos que não sucumba ao caos. E apareceu aqui na Terra, um homem cósmico dessa natureza, um homem que equilibra extremos e sintetiza antíteses aparentemente inconciliáveis. A grandeza de Mahatma Gandhi não está em ter sido um grande místico, nem em ter sido um hábil político, mas de ter equilibrado em sua alma dois mundos quase sempre desequilibrados em outros homens. No homem comum, de estreitos espaços internos, não pode, de fato, haver amizade e harmonia entre o Deus do mundo e o mundo de Deus.

Desde tempos imemoriais tem havido místicos, desertores do mundo que encontraram a sua perfeição e felicidade na silenciosa solidão com Deus, em alguma caverna, na vastidão da floresta, no cume da montanha, no sugestivo silêncio do deserto - ou então por detrás dos muros de um convento ou mosteiro. Por outro lado, existem homens dinâmicos, peritos em lidar com dinheiro, mestres em política e diplomacia, relações nacionais e internacionais, homens que, depois de mortos, costumam ter estátuas de bronze ou de mármore em praça pública e cujas biografias enchem as prateleiras das bibliotecas.

O homem profano, vive na alucinação de que ele é unicamente seu ego humano, que realiza grandes coisas no mundo; que é a sua inteligência e astúcia, o seu dinheiro, o seu jeito, a sua erudição, a sua incessante agitação social em todos os setores da vida, que é a causa real e final do que ele realiza na Terra. E se alguém lhe disser que por detrás desses elementos ponderáveis e palpáveis da sua ruidosa – e vazia – atividade, existe um imponderável e intangível universo que, em última análise, é a fonte inicial e profunda de tudo o que realmente grande acontece na vida desse homem. No entanto esse homem dinâmico e incrédulo, considera poético, filósofo ou místico e nada prático, o homem que tão estranha coisas profere. Esse homem ignora o que seja passividade dinâmica ou serenidade creadora. Não tem consciência do imenso reservatório de forças cósmicas, esse invisível oceano que se alarga misterioso e infinito, para além de todos os horizontes da percepção físico-mental. Para esse homem, só existem os pequenos igarapés que brotam do seu conhecido ego, e que correm para um destino desconhecido. Esse homem medíocre e míope nem sequer suspeita que essas águas da sua atividade febril vão para o silencioso mar de onde vieram.

Para Gandhi, a sua política externa tinha alicerces na sua mística interna. Muitos são os impuros que vivem no meio dos impuros. Poucos vivem puros no meio dos puros. Pouquíssimos conseguem viver puros no meio dos impuros, e esses são os verdadeiros “mahatmas”, as grandes almas, os homens cósmicos, plenamente realizados.

Esse místico solitário aparece em palácios de reis e chefes de Estados, nas grandes cortes europeias; toma parte em debates políticos em torno de temas internacionais e nacionais; agita questões de grande relevância; porque esse homem é um hábil político e jurista, formado pela Universidade de Londres, que conhece e usa de toda a dialética dos advogados e possui toda a perspicácia dos grandes estadistas. E no seu próprio país, aparece no Congresso Nacional e pleiteia, contra o poderoso império Britânico, a emancipação política de 430 milhões de conterrâneos escravizados da época; mas não usa de nenhuma das armas materiais de que seus antagonistas se servem. Substitui a arma pela alma. Gandhi não acumula dinheiro para si; vive na extrema humildade e simplicidade em todos os aspectos. Veste roupas mínimas e anda descalço ou com uma sandália pobre, mesmo nos salões mais luxuosos, o que lhe valeu o jocoso apelido de “faquir seminu”.

Cercado da mais imunda e decrépita política e diplomacia internacional da época, ele não se desvia da sua linha de absoluta verdade e sinceridade; não admite manobras escusas, não aceita as manipulações dos bastidores, mas somente à sua voz interior, a voz de sua consciência.

Com o fenômeno Gandhi, a história da humanidade entra numa nova fase de evolução, pois se pode provar que são compatíveis a mais intensa mística e a mais extensa dinâmica exterior, o Deus do mundo e o mundo de Deus. Esse homem realizou na sua vida a grande síntese do espírito e da matéria, do fogo e da água, e o que foi possível uma vez na Índia é possível sempre e por toda a parte.

O mundo ainda não compreendeu a verdadeira grandeza de Gandhi, e o que vemos hoje, continua sendo a política do naufrágio moral, dos governos de um quadro minoritário de poder que se servem apenas de seus interesses particulares, levando à maioria das nações – já que a mediocridade não tem fronteiras - às desigualdades das condições sociais, aos contrastes entre a imensa riqueza e a mais pobre e vil condição humana, na política do desprezo a aqueles que mais trabalham, e que não tem o mínimo direito de expressão, e quando pensam ter, enfrentam o látego da “democracia” protegida por um estado policial que não mede consequências em aniquilar brutalmente os que tentam reverter o quadro dantesco criado pela miséria da razão.

Na realidade, Gandhi visava a sua autorrealização, a “única coisa necessária”: “Que o Senhor nosso Deus é um. E amarás o Senhor seu Deus com todo o seu coração e com toda a sua alma e com toda a sua mente e com todas as suas forças.” E a segunda coisa necessária é esta: “Que deves amar o seu próximo como a si mesmo”, o que implica nessa autorrealização e libertação do homem. Mas Gandhi, esse genuíno cristão da Índia, não foi considerado um cristão pelas igrejas do ocidente, não só pelas suas conquistas no nível íntimo, social e de seu povo, mas por talvez ter afirmado que aceitava Jesus e o seu Evangelho, mas não aceitava o cristianismo do clero.

Para ele, o Sermão da Montanha causou-lhe profunda impressão, semelhante ao Bhagavad Gita, em particular ao que disse Jesus: “Não resistam ao maligno. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E, se alguém quiser lhe roubar a sua túnica, deixe que leve também a capa”, que o encantou a ponto de compara-lo ao poeta Shamal Bhatt que em um dos versos escreve: “Que quando alguém lhe pede um copo d’agua, lhe ofereça também um bom prato de comida”, e que para Gandhi, esse tipo de renunciação era a forma mais elevada de religião.

Gandhi passou 20 anos no sul da África; foi para aquele continente com o ego tirânico escravizado pelo dinheiro e pelo desejo de fama - e de lá voltou liberto de seu ego pelo poder do seu Eu divino. Embarcou para a África do Sul para voltar milionário - e voltou quase sem nada, de humildes vestes de renunciação, despojado de ego e cristificado. Quando o famoso poeta indiano, Rabindranath Tagore, que conhecia o Doutor Karamchand Gandhi, viu o Gandhi espiritualizado, exclamou: “Eis aí uma grande alma em trajes de mendigo!” Desde então se popularizou na Índia e no mundo inteiro o apelido “Mahatma” (grande alma).

A libertação da Índia, que ocorreu quase meio século mais tarde, foi apenas um corolário, um transbordamento normal, da libertação individual de Gandhi. E ele deu tão pouca importância à libertação política de sua pátria, que nem mesmo assistiu à proclamação de Independência Nacional de seu país, que se deu à meia noite do dia 14 a 15 de agosto de 1947, enquanto Gandhi andava longe da Capital, do outro lado da Índia, libertando a si mesmo através da libertação dos indianos.

O ideal supremo de Gandhi era a sua autolibertação, ou auto-realização, que se manifestou no cenário político, pela tentativa de restaurar a harmonia de seu povo, da convivência pacífica entre as diferentes religiões, na declaração da Independência da Índia e por ter evitado uma guerra sangrenta entre paquistaneses e indianos.

Quando ele afirmou que: “A verdade é dura como um diamante e delicada como uma flor de pêssego”, ele teve a intuição do Universo e do homem como sendo a Verdade (dureza do diamante) revelada como Beleza (a delicadeza de uma flor de pêssego).

Gandhi foi um dos raros representantes típicos da nova raça humana em evolução, pois ele não visou outro objetivo senão “a única coisa necessária”; um homem que conseguiu através da plenitude do amor, neutralizar o ódio de muitos e nem mesmo permitia que seus companheiros alimentassem pensamentos hostis contra os ingleses, afim de impedi-los de praticar atos hostis, pois pensar o mal é o prelúdio de fazer o mal.

Os inexperientes na mística divina, os homens não espirituais, tacharão de egoísmo essa atitude, porque não compreendem que auto-realização é o mais radical despojamento do ego. Auto-realização é o cumprimento do destino supremo e único da existência humana.

Quando Ramana Maharshi foi questionado por um espiritualista inglês como fazer o bem à humanidade, o grande vidente de Arunáchala respondeu: “A única maneira de fazer o bem é ser bom.” Ser bom significa estar realizado em Deus, porque essa realização em Deus é a única maneira de fazer o bem aos homens.

Todo altruísmo sem autorrealização é como muitos zeros: 000000; mas a autorrealização é o grande valor 1, que valoriza todos os zeros: 1000000...

Texto escrito quando da comemoração dos 72 anos do assassinato do Mahatma Gandhi e em parte extraído do livro Mahatma Gandhi, de Huberto Rohden. 

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