Não cumpro a vontade de Deus porque não gosto.
Fazem parte dessa categoria, os homens cujos fenômenos sobrenaturais não conseguem compreender, os materialistas, os profanos, os cultores do ego e os analfabetos de Deus – nenhum deles cumpre a vontade de Deus, porque essa vontade lhes parece amarga, ao passo que a vontade própria lhes dá mais satisfação. Nem suspeitam que a vontade do Creador não é contrária à vontade do ego. E, como vivem em completa cegueira da realidade sobre Deus e sobre o Eu, só podem confirmar a vontade do ego e negar ou ignorar a vontade de Deus. Para o homem profano, negar a vontade própria para sustentar a vontade de Deus, é um absurdo e até impossível, uma vez que Deus não é para ele uma realidade objetiva, mas apenas uma palavra sagrada ou uma bela ideia. Ora, é lógico que ninguém queira negar a realidade do próprio ego por alguma vaga e incerta miragem de Deus. Por isto, o homem profano, para ser lógico no seu analfabetismo espiritual, tem que ser um egocêntrico que sempre confirma sua vontade própria e nega constantemente a vontade universal de Deus.
Cumpro a vontade de Deus, embora não goste.
Nessa categoria pertence o homem ético que sabe da existência de um Deus que governa o mundo e a humanidade. Sabe, não por experiência pessoal, mas crê nesta verdade, tem fé na existência de Deus e do mundo invisível. E por isto, esforça-se por cumprir a vontade de Deus, que ele experimenta, mas como contrária à vontade do próprio ego. Para ele, o cumprimento da vontade divina está unido com a negação da vontade própria, implicando em uma vida de perene sacrifício e renúncia. O homem desta classe é o homem tipicamente moral e heroicamente virtuoso. A maior parte dos “homens bons” do momento pertencem a esta categoria.
O homem ético, em busca da perfeição espiritual, alimenta um secreto e inconsciente menosprezo pelo resto da humanidade, que não tem a coragem heroica de cumprir a lei de Deus como ele. Com muitos desses homens ocorre uma triste tragédia, que eles próprios ignoram, ou seja, o seu heroísmo os enche de orgulho e vaidade, um complexo de superioridade moral, gerando neles um sutil desprezo pela humanidade que não compartilha com suas ideias.
Como no presente estágio evolutivo da humanidade, a mística é rara exceção, e a maior parte dos homens virtuosos e bons são apenas heróis da ética; formou-se a filosofia de que todas as coisas moralmente boas são difíceis, como todas as coisas más são fáceis. Esta filosofia ética é relativamente verdadeira, no nível atual da evolução espiritual, embora seja absolutamente falsa, quando considerada de uma perspectiva mais elevada. Para o homem perfeito, para o homem crístico, as coisas eticamente boas são agradáveis. No céu, certamente, ninguém cumpre a vontade de Deus com sacrifício e heroísmo – e “céu” não quer dizer um lugar, mas, sim, um estado da alma, uma perfeita consciência de Deus.
Portanto, para o homem ético e virtuoso, Deus é uma espécie de tirano, que se deve temer, ou um juiz inexorável diante do qual o homem deve tremer de medo. Deus, no nível ético, é a personificação de tudo que é difícil e desagradável para esse homem – assim como o ego é a síntese de todas as coisas fáceis e agradáveis. Ele entende que Deus e o ego vivem em terrenos opostos, em guerra um com o outro, e nem é possível um tratado de paz. Ou Deus – ou o ego! Este é o dilema do homem no nível da devoção ética, de uma ética ainda não espiritualizada.
Consequentemente, o céu, a vida eterna, deve ser a abolição do ego, a extinção da personalidade, como no nirvana budista. De fato, todo aquele que busca a perfeição espiritual é um budista, um extintor da personalidade, aquele que nega o ego para confirmar Deus, mas cumpre a vontade de Deus, a contragosto.
Cumpro a vontade de Deus porque gosto.
No terceiro nível da evolução humana desponta a alvorada do espírito, a visão da Realidade total, onde o homem realiza a mais gloriosa síntese das duas antíteses: ama a lei, cumpre a lei de Deus com gosto e satisfação, encontra supremo prazer no cumprimento de seu dever, e em estabelecer a concentricidade da vontade humana com a vontade de Deus.
Mas como é isto possível?
É possível unicamente à luz da Verdade integral, pois o homem espiritual descobriu a verdade de que o seu Eu não é, propriamente, contrário a Deus, como o asceta pensa. Descobriu, com Tertuliano, que a alma humana é crística por sua própria natureza; que o verdadeiro Eu humano, na sua mais profunda essência, é idêntico a Deus; que o reino de Deus está dentro do homem; que a alma humana é imagem e semelhança de Deus; que a alma humana é de estirpe divina e que o Eu verdadeiro é uma participação da natureza divina.
O homem espiritual não tem a pretensão de querer se tornar divino; não, ele simplesmente fez a descoberta da sua identidade com Deus. Sabe, como todos os grandes gênios metafísicos e místicos, que existe só uma Realidade eterna, infinita, absoluta, e que todas as demais “realidades” não são novas realidades, senão apenas novas modalidades, novos modos-de-ser dessa única Realidade. Sabe que ele mesmo é uma forma individualizada de Deus, consciente e livre como Deus, embora em grau inferior de consciência e liberdade.
E, com a descoberta da sua essencial identidade com Deus, se dissipa da vida do homem espiritual a concepção ascético-ético-budista da santidade como consistindo na despersonalização do Eu humano, a concepção de que a afirmação de Deus implique na negação do Eu.
Por que é que o asceta ignora isto? por que é que afirmar a Deus equivale a negar o Eu?
Pela simples razão de que o homem ético, e ainda não devidamente espiritualizado, é incapaz de distinguir entre o seu Eu verdadeiro e o seu pseudo Eu. Por mais que o negue, continua a identificar o seu Eu com o seu indivíduo físico e psíquico e que continua matriculado na escola sofística do empirista Protágoras, definindo o homem como este ou aquele ser individual – e não ingressou ainda na escola metafísica do grande místico Sócrates, que sabia intuitivamente que o homem é um ser universal, embora se manifeste em formas individuais.
Ora, todo homem espiritual sabe com absoluta certeza que o seu Eu verdadeiro é divino, eterno, imortal, e não pode jamais estar em contradição com Deus, porque a alma humana é Deus em forma individual.
Por isto, a santidade do homem espiritual consiste na afirmação de seu verdadeiro Eu, e na negação de seu pseudo Eu. O céu é a confirmação cristã do conceito da personalidade, a definitiva e vitoriosa compreensão da natureza divina de sua alma e a perfeita harmonização da sua vontade individual humana com a vontade universal divina.
Diante dessa verdade, a vida espiritual deixa de ser sacrificante, mas profundamente jubilosa; o homem cumprindo a vontade de Deus como quem cumpre a sua própria vontade, porque sabe que a perfeita realização da vontade de Deus é a única realização do seu verdadeiro Eu.
Texto revisado extraído do livro Profanos e Iniciados
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