Poucos homens devem ter levado uma vida tão feliz como o genial africano convertido ao cristianismo, Agostinho de Hipona, autor de Confissões, A Cidade de Deus, considerados uma das grandes obras-primas da literatura ocidental. "Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração até que encontre quietação em ti", é uma das suas mais significativas citações. Viveu mais de meio século de prosperidade, de saúde, de inteligência brilhante, de glórias e admiração, e de profanidade também. E esse homem, nadando num oceano de bonanças, anseia por uma felicidade longínqua, desconhecida, porém intensamente procurada e sofrida. Após a morte do filho, vende todas as suas riquezas e as doa aos pobres, passando seus últimos dias em oração e penitência, com salmos pendurados nas paredes de seu quarto para que pudesse lê-los.
Leão Tolstói foi outro felizardo profundamente insatisfeito: nascido de uma família rica de aristocratas, fazendeiro e dono de imensa fortuna, pai de nove filhos, feliz como esposo e pai, como escritor famoso, poeta e artista, alvo de imensa admiração do mundo e, no entanto, se sente tão infeliz nessa condição, que resolve fugir da sua prosperidade. Desaparece por um tempo, mas a polícia o reconduz para casa e o obriga a viver no meio da família. Ele, porém, não tolera a sua felicidade; numa fria noite de inverno, aos oitenta e dois anos de vida, foge novamente, e desta vez em companhia de Alexandra, sua filha mais nova, que parece ter participado da nostalgia mística do pai, em busca do despertamento espiritual. Apenas com a roupa do corpo, adoece no trem e morre em uma pequena e isolada estação ferroviária; e, antes de dar o último suspiro, transmite a filha a sua última vontade, proibindo qualquer discurso, música ou pompa em seu funeral.
Nem sempre o dinheiro, divertimentos, sexo, roubam ao homem a visão de uma felicidade transcendente; desse roubo só são vítimas os homens medíocres, presos na terra, e incapazes de invejarem o voo da águia nas luminosas alturas do céu.
Quando Jesus diz aos seus discípulos que eles são o sal da terra, faz alusão a esse condimento de espiritualidade, destinado a tornar saborosas todas as materialidades da vida terrestre. Não lhes recomenda comer sal puro, mas sim condimentar todos os alimentos da vida física com o sabor da metafísica e da mística, que ele designa geralmente com a palavra o "Reino de Deus". Mas também faz a seus discípulos, séria advertência: se o próprio sal da espiritualidade perder a sua salinidade, fica inútil e para nada serve senão para ser lançado fora e pisado pelos pés dos transeuntes.
Quando o homem perde a consciência da sua espiritualidade, a consciência do seu Eu divino, como poderia ele ainda espiritualizar a sua vida material? Como poderia o Eu divino condimentar as profanidades do ego humano, se ele perder a consciência de que "eu e o Pai somos um"?
E como conseguirá o homem preservar esta consciência se, no meio deste absurdo dilúvio diário de profanidades, insanidades e frustrações, não se recolher à sacralidade da interiorização, da sintonia com o Pai?
Esse homem perdeu a sua razão de ser, sua identidade. Pode ser que os seus companheiros de profanidade, aparentemente o estimem e respeitem; mas, o que eles respeitam é antes, o que esse homem tem, e não o que ele é; respeitam algo que ele possui, dinheiro, sua posição social, seu prestígio, mas não respeitam o alguém que ele devia ser, e que não é. Em última análise só se pode respeitar um valor e não uma coisa. Mas o homem que se desvaloriza e se torna uma coisa, deixou de ser alguém e se tornou apenas algo.
Hoje em dia, quem não anda na moda não é moderno, e, como o homem profano, acima de tudo, quer ser moderno, tem que acompanhar a moda, por mais corrompida que seja. A moda, porém, é quase sempre ser escravo da opinião pública, não se guiar pela consciência própria, mas obedecer a convenções alheias. Não ser moderno exige grande firmeza de caráter e independência de espírito. E é quase impossível ter consciência própria. A publicidade social e comercial é tão requintadamente sutil e contagiante, que nenhum homem medíocre resiste ao impacto da propaganda; só poucos homens estruturados conseguem erguer-se, salvos, do meio do vasto areal da escravidão universal da sociedade.
Para não ser moderno é necessário ser herói.
Para ser alguém é preciso ter a coragem de renunciar a algo - e muitas vezes esse algo é quase tudo que a sociedade preza.
Para poder funcionar como o sal da sociedade, para lhe dar sabor e preserva-la da corrupção, é necessário, não raro, parecer antissocial, não ser um passivo refletor da opinião pública, mas sim um ativo administrador dela.
O “homem-sal” tem que ter a coragem de ser antipático à sociedade; por amor à sociedade, tem que a contrariar para salva-la.
O homem espiritual se guia por princípios - o homem material só é dominado por fins.
O homem fraco é derrotado por fins egoísticos - o homem forte é orientado por princípios espirituais.
Por isto, o homem de princípios não terá fim, é eterno, porque está sempre no princípio da sua vida e carreira.
Os princípios preservam o homem.
Os fins corrompem o homem, como se corrompem os alimentos sem o sal.
Texto revisado extraído do livro Sabedoria das Parábolas
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