Muitas palavras do Evangelho sofreram, através dos séculos, grande adulteração e enganos, quando caem em mãos humanas; e é absolutamente certo que todas as revelações divinas, quando pousam nessas mãos, são quase que imediatamente contaminadas pelos interesses dos quem as recebem. Escritores e oradores de fama mundial, e até ministros do Evangelho, aderem à blasfêmia de que Jesus tenha proclamado – só para citar um exemplo - bem-aventurados e cidadãos do reino dos céus os “pobres de espírito,” isto é, os de pouca inteligência, os idiotas e imbecis, os mentalmente medíocres.
Se assim fosse, Jesus mesmo, riquíssimo de espírito, não faria parte dos bem-aventurados e possuidores do reino dos céus.
Não se sabe o que mais estranhar nessa interpretação, que se tornou proverbial, se a hilariante ignorância dos seus autores ou a revoltante arrogância dos profanadores de uma das mais sublimes mensagens de Jesus. Não tiveram a habilidade de compreender que a mensagem se referia aos “pobres pelo espírito,” ou seja, os simples e humildes, os despojados de ego.
E o mesmo se passou com a célebre frase: “Quem não renunciar a tudo que tem...”
Depois de ter atravessado um longo período de infância e adolescência de cristianismo teológico, a mensagem do Mestre está entrando, em nossos dias, na adultez da sua qualidade crística, cósmica, aquela que carrega o significado metafísico da cruz no Eu e do Evangelho na vida... pois tudo evolui!
O que Jesus disse, há mais de 20 séculos, em pleno paganismo e judaísmo, não podia ser compreendido devidamente pela humanidade daquele tempo. Apenas um ou outro espírito intuitivo atingiu a excelsitude de sua mensagem, que visa antes uma humanidade crística do que a humanidade ainda adâmica de nossos dias. Essa mensagem foi formulada em pleno barbarismo pagão do Império Romano e no ritualismo judaico. Portanto, não foi compreendida como sendo uma mensagem da mais elevada metafísica. Por isto, os chefes espirituais resolveram apresentar a metafísica cósmica do Evangelho em forma de uma pedagogia teológica, visando moralizar o homem primitivo. Deus, o Cristo, o homem, a vida após a morte – tudo foi divulgado em moldes infantis, “leite para crianças,” como diria Paulo de Tarso.
Dois mil anos são para a evolução da humanidade, o que dois anos são para a criança. A evolução vai com passos mínimos em espaços máximos. A verdade é que, durante esses 20 séculos, sempre houve gênios espirituais que anteciparam séculos futuros e vislumbraram a alma divina da mensagem de Jesus. Ultimamente, estão aparecendo um número cada vez maior de homens que, para além do cristianismo teológico, vislumbram a cristicidade espiritual. Cada vez mais aumenta a vontade de uma experiência direta de Deus, em vez de uma simples crença em doutrinas sobre Deus.
Essa intuição experiencial é de uma elite ainda muito pequena em comparação com a grande massa dos que não conseguem ultrapassar a crença tradicional. Essa elite espiritual da cristandade sabe que redenção é auto redenção, e auto redenção é Cristo-redenção, e Cristo-redenção é redenção pelo Cristo interno que está presente em todo ser humano. Segundo o Evangelho, essa auto redenção consiste no despertamento da consciência do Cristo e de uma vivência de acordo com esta Cristo-experiência.
É flagrantemente absurdo supor que o homem, dotado de livre arbítrio, possa ser redimido por um fator alheio a ele mesmo, o que seria a total negação da autonomia espiritual do homem. Toda a realização, redenção ou salvação, consiste essencialmente em dois aspectos: Oração e Renúncia. São as duas asas sobre as quais a alma se ergue num vôo a Deus. “Orai sempre – e nunca deixeis de orar.” “Quem não renunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo.” Quando o Mestre exige essa segunda atitude, visa, em primeiro lugar, não a renúncia aos bens objetivos, mas sim ao bem subjetivo do nosso ego, que é o nosso grande mal.
Quem não renunciou ao seu ego pessoal não pode renunciar aos objetos impessoais, e, ainda que a estes renunciasse, não seria uma renúncia perfeita, seria uma renúncia forçada e dolorosa. Uma renúncia feita com dor não é uma renúncia garantida. Renúncia perfeita é somente aquela que se faz com alegria e espontaneidade – e esta renúncia aos objetos impessoais só é possível na base da renúncia ao ego pessoal. Quem renunciou a seu ego subjetivo não encontra nenhuma dificuldade na renúncia aos bens objetivos, que é sua consequência direta.
Essa libertação da escravidão material pela força espiritual supõe uma grande experiência e iluminação interna. Ninguém abandona algo que ele considera valioso sem que encontre algo mais valioso. Quem não encontrou o “tesouro oculto” e a “pérola preciosa” não pode abandonar os pseudo tesouros e as pérolas falsas dos bens da terra.