Thursday, 12 August 2021

A NOITE TENEBROSA DO MÍSTICO

Este talvez seja o mais inexplicável fenômeno que todo místico conhece, na sua jornada ascensional rumo a Deus: depois de alcançar total purificação, depois de atingir elevado grau de iluminação, pouco antes de cruzar a misteriosa fronteira para a definitiva união com Deus – ele passa pela chamada “noite tenebrosa da alma”, fenômeno em que João da Cruz (1542-1591), místico, poeta e religioso espanhol e sua grande discípula, Santa Tereza de Jesus, foram mestres na descrição desse fenômeno.

Dizem os psicólogos que essa treva é uma reação do cansaço causado pela passagem através dos dois primeiros estágios evolutivos, da purificação e da iluminação, que, necessariamente, precedem a União.

Entretanto, a mais profunda razão não é apenas psíquica, e sim mística ou cósmica.

Em transição para a definitiva união com o Infinito, ocorre a morte do ego tirânico, a morte irrevogável do velho homem adâmico, e esse morrer é experimentado como uma escuridão, como um eclipse total da personalidade do ego luciférico.

De resto, não pode haver experiência genuína do mundo espiritual sem esse “batismo de sangue”, sem a passagem pelo “mar vermelho” de um grande sofrimento – e a morte definitiva do ego é, sem dúvida, o maior dos sofrimentos. O sofrimento é o último e supremo fator de iniciação. Depois que o homem compreendeu tudo que era compreensível, tem que ser aniquilado, reduzido a zero, antes de poder ver o Todo. Se entre a vida consciente do ego e a vida superconsciente do Eu não existisse separando, o abismo do nada, da absoluta aniquilação, que se revela como sofrimento, a subsequente união com Deus poderia parecer o produto de alguma engenhosa ou genial atividade do ego; mas, depois que este foi reduzido a zero, crucificado, morto e sepultado, o homem jamais poderá considerar as núpcias místicas da alma com o divino Esposo, como algo merecido ou produzido pela personalidade do ego.

Para que essa união mística apareça em todo esplendor da verdade daquilo que ela é na realidade, isto é, uma puríssima graça de Deus – a grande escuridão deve acampar no limiar do santuário.

“Para que nenhum homem se glorifique na presença Dele.”

Depois de passar por essa treva espessa, a alma está definitivamente adulta e madura para ingressar no reino de Deus.

Aqui está a linha divisória entre a espiritualidade meramente devocional de certos místicos poéticos e líricos – e a experiência creadora de uma alma que, de fato, foi empolgada pelas veementes tempestades de Deus. Há, na genuína experiência mística, algo profundamente trágico, quase mortífero; a alma, chegada a essa definitiva fronteira entre dois mundos, sabe e sente que se trata de vida ou morte, que é chegado o momento da grande crise, de uma decisão suprema, da qual não há regresso ... e que uma experiência dessas causa profundas modificações também na vida externa do homem.

“O meu reino não é deste mundo”, diria essa alma!

É esta a voz que ecoa, sem cessar, na alma do místico que teve o seu encontro com Deus. E, se alguém lhe oferecesse “todos os reinos do mundo e sua glória”, ele não se daria ao trabalho de estender a mão para se apoderar dessas sombras e desses fantoches de trapos, que formam o cobiçado alvo da desenfreada lufa-lufa diária de uma vida agitada e vazia, da ganância e das guerras dos profanos ...

Deslocou-se o seu centro de gravitação ...

A sua órbita deixou de ser geocêntrica, egocêntrica – tornou-se heliocêntrica, teocêntrica, cosmocêntrica ...

Perdeu de vista as praias e os litorais de outrora e deixou-se arrebatar pelas exultantes ondas dos mares de Deus ...

Para onde?

Não interessa saber ... Deus o sabe - e isto basta!

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O poema de João da Cruz narra a jornada da alma desde a sua morada carnal até a união com Deus e representa as dificuldades da alma em desapegar-se do mundo e atingir a união com o Creador. A ideia principal do poema pode ser vista como sendo a dolorosa experiência pela qual as pessoas passam em suas tentativas de amadurecer espiritualmente para unirem-se a Deus. A noite tenebrosa parece ser o transe da alma, um rito de passagem para a grande realidade da razão espiritual intuitiva, um final de glorificação.

Provavelmente essa noite tenebrosa seja apenas uma figura de linguagem, ou um conceito que durante o período da vida de João da Cruz tenha sido criado e desvirtuado, devido à profunda ignorância das coisas do espírito que vigoravam em sua época, e que formou um sedimento na mente humana até os dias de hoje, ignorância que foi alimentada pela própria igreja ... cegos guiando outros cegos! Essa noite tenebrosa não poderia ser a luz da alvorada do terceiro céu? Um êxtase místico! Uma realidade que está além dos nossos sentidos e da mente?

Santa Teresa também sofreu experiência semelhante. Quando buscava respostas às suas dúvidas sobre a vida após a morte, ela teria dito a suas colegas freiras: “Se vocês soubessem em que escuridão eu estou mergulhada.”

Madre Teresa de Calcutá assim escreveu: “Na minha alma eu sinto aquela terrível dor da perda e eu não encontro palavras para expressar a profundidade dessa escuridão.”

Essas experiências talvez possam nos ajudar a identificar e compreender o estado de abandono que Jesus sentiu durante as piores horas de seu sofrimento, em particular desde a traição até o crucifixo.

 

A NOITE TENEBROSA DA ALMA

1. Em uma noite escura, de amor em vivas ânsias inflamada. Oh! ditosa ventura! Saí sem ser notado, já minha casa estando sossegada.

2. Na escuridão, segura, pela secreta escada, disfarçado. Oh! ditosa ventura! Na escuridão, velada, já minha casa estando sossegada.

3. Em noite tão ditosa, e num segredo em que ninguém me via, nem eu olhava coisa alguma. Sem outra luz nem guia além da que no meu coração ardia.

4. Essa luz me guiava, com mais clareza que a do meio-dia, onde me esperava, quem eu bem conhecia em um lugar onde ninguém aparecia.

5. Oh! noite que me guiaste, Oh! noite mais amável que a alvorada. Oh! noite que juntaste, Amado com amante, amante já no Amado transformado!

6. Em meu peito florido que, inteiro, para ele só guardava quedou-se adormecido. E eu, terno, Oh! regalava e o leque dos cedros, Oh! refrescava.

7. Da ameia da torre sopra a brisa amena, quando eu os seus cabelos afagavam com sua mão serena em meu peito soprava, e meus sentidos todos transportava.

8. Esquecido, quedei-me, Oh! rosto reclinado sobre o Amado. Tudo cessou, deixei-me, largando meu cuidado, por entre as açucenas esquecido.

Texto acrescentado e revisado, extraído do livro Ídolos ou Ideal? 

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