Wednesday 2 December 2020

A REVELAÇÃO DE DEUS

Embora reconhecendo os esforços sinceros de cada igreja de seu tempo, Jesus não se considerava membro de nenhuma delas como não se filiou à igreja oficial e não permitiu que ninguém o considerasse como fundador de nenhuma igreja, teologia ou mandato eclesial. Ele não vivia recitando rosários e nem mesmo perdia seu tempo examinando textos bíblicos, tentando explicar ou interpretar seus conteúdos.

De fato, o que acontece é o erro secular de que toda certeza venha de textos bíblicos, que a revelação de Deus esteja limitada aos escritos contidos na Bíblia – ou de qualquer outro livro sacro - e pior ainda, que por Bíblia, no caso, se entendam as frases, as palavras e as letras contidas nesse livro.

Essa infeliz mania – ou, como dizia o ilustre pastor norte americano, Harry Emerson Fosdick (1878–1979), essa horrível bibliolatria – de querer decidir tudo com textos bíblicos individualmente analisados e arbitrariamente interpretados, dividiu o Protestantismo em centenas de seitas, particularmente nos Estados Unidos da América. Bem dizia Paulo de Tarso, que a letra mata, mas o espírito dá vida. Quanto mais se analisa a letra da Bíblia sem lhe atingir o espírito, mais e mais se multiplicam as seitas dentro do cristianismo.

Não se tem notícia de que Jesus, que possuía na alma o espírito dos livros sacros, tivesse examinado textos bíblicos a fim de aprofundar o seu conhecimento de Deus. Quando Francisco de Assis, esse incomparável mensageiro do Reino de Deus, ouviu que alguns de seus discípulos fundaram em Bolonha, uma biblioteca com a finalidade de estudar teologia e discutir os textos bíblicos, se recusou a se hospedar nessa espécie de seminário teológico, receando que seus discípulos asfixiassem o espírito divino do Evangelho sob o peso morto das teologias humanas. Para quem possui o espírito divino da Bíblia, o estudo correto da letra só lhe pode aumentar e intensificar esse espírito; mas quem pensa que pelo simples estudo analítico de textos sacros possa tornar-se um cristão genuíno e integral, ou de qualquer outro credo, vive num perigoso erro, confundindo qualidade com quantidade, identificando revelação divina com erudição humana.

Este é o grande mal do cristianismo moderno, sobretudo do setor “evangélico” ... pelo fato de ter substituído o Evangelho vivido pela teologia discutida e debatida. Quem uma vez passou uma única noite, ou uma hora sequer, nesse banho de luz divina, que é o Evangelho vivido, sabe com infalível certeza que a redenção humana não está nesta ou naquela igreja, teologia, explicação ou interpretação de textos, mas num encontro pessoal com Jesus nas profundezas do Evangelho vivido. Pode-se dizer que Jesus é o cristianismo e quem não se identificou com ele pela experiência pessoal, não vive o cristianismo. Pode-se dizer até – por mais que isso escandalize os inexperientes – que nem o conhecimento do Evangelho como texto garante a posse real do cristianismo, embora seja um excelente caminho para essa posse. Existem pessoas que conhecem perfeitamente os quatro Evangelhos, mas não tem cristianismo, porque não sabem experiencialmente o que é o Cristo, pois não tiveram o seu encontro pessoal com Deus.

Pandita Ramabai (1858–1922), reformadora social, educadora e pioneira na emancipação da mulher Indú, afirma que viveu dez anos junto com cristãos sem se ter encontrado com Jesus. O encontro pessoal com ele é o grande Pentecostes da vida do homem espiritual; é o passo decisivo, a morte do homem adâmico e o nascimento do homem crístico; é a crise redentora, a transição das trevas para a luz, da morte para a vida. Antes desse encontro, não há solução real para nenhum problema da vida humana – depois desse encontro, não há problema algum que não esteja resolvido ou em vias de solução definitiva. A crise redentora está exclusivamente nesse encontro pessoal com Deus, nesse jubiloso “já não sou eu quem vivo – o Cristo é que vive em mim!” Basta que, em certo lugar ou em alguma comunidade, viva um único homem que de fato conheça a Deus por experiência pessoal, que possua a mística da fé encarnada na ética da vida; basta que exista um único desbravador do espírito dessa natureza, não um super-homem, mas um homem integral, e verá que do foco intenso da sua fé saltarão centenas de fé, que quando encontrarem suficiente combustível, se transformarão em novos centros de fé, verdadeira reação em cadeia, e dentro de algum tempo estarão o céu e a terra iluminados pelos clarões de um vasto incêndio de fé universal. E todos os que arriscarem esse salto para o encontro de Deus, saberão por experiência pessoal que não foi um salto para a triste vacuidade das trevas e da morte, mas para a exultante plenitude da luz e da vida. Todo e qualquer “reavivamento espiritual” digno deste nome principia invariavelmente, com a experiência profunda de quem procura na sua intimidade, o encontro com Deus, e não com alguma organização eclesiástica, por mais poderosas que ela possa parecer.

Os seguidores de Jesus do tempo das catacumbas não conheciam outra espécie de cristianismo senão esse, do Cristo Jesus, real, vivido nas páginas do Evangelho; e era por isto que com o sorriso nos lábios, o fulgor da alegria nos olhos e a paz do Cristo no coração, se entregavam ao martírio ... Pois tinham ultrapassado as últimas fronteiras do pecado e da morte e viviam vida imortal aqui na Terra.

Onde está esse cristianismo radiante e irresistível? Poderá reviver contanto que, em vez de arrastar essa pseudo vida enferma sob a penumbra da “letra morta,” ressuscite para a vida plena e de exuberante saúde dada pelo “espírito vivificante” dos livros divinamente inspirados.

Querer que alguém prove, com textos extraídos da letra morta, que Jesus enxergava Deus, o homem e o mundo numa grandiosa visão panorâmica, num Todo Orgânico, numa estupenda Harmonia Cósmica – é se confessar analfabeto do Espírito do Evangelho e ignorar o que os maiores gênios espirituais humanos, de todos os tempos e países, experimentaram ao entrarem em contato íntimo e vital com o espírito vivificante do Evangelho.

Texto, em parte, extraído do livro Evangelho ou Teologia?  

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