Há quem pratique caridade a seus semelhantes pelo simples motivo de simpatia emocional, porque é repugnante para o espírito sensível, ver sofrer algum ser vivo. Essa filantropia é, certamente, recomendável - mas não é a vivência crística!
Ocorre que não podemos realizar o Cristo dentro de nós se não o servimos na pessoa de nossos semelhantes. E isso é a verdadeira ética cristã. O Cristo interno não ressuscita em nós se não ajudarmos o Cristo externo nos outros - é essa a grande lei da polaridade cósmica! Os bons samaritanos, os cireneus, as verônicas, os Francisco de Assis, os Gandhi, os Schweitzer, os Martin Luther King e muitos outros, realizaram seu Cristo interior. Pois, encontrando o Cristo nos outros, o encontramos dentro de nós mesmos; se recusarmos ver o Cristo nos indigentes, loucos, cegos, surdos, mudos, enfermos e necessitados de todos os tipos, nunca o veremos em sua glória. Ninguém pode ver o Cristo glorioso no Pai quem não o viu na miséria dos nossos irmãos humanos.
O mais importante da prática da caridade não é socorrer ao sofredor, ao necessitado, ao doente. Deus, poderia num só instante, acabar com todas as misérias e sofrimentos da humanidade, mesmo sem a nossa intervenção. E por que Deus não o faz? E se Deus não o faz, porque é que nós devemos fazer caridade?
Acontece que existe, para além de todas as caridades éticas, um grande mistério metafísico e místico ...
O principal beneficiário de nossa caridade não é aquele que recebe, e sim aquele que dá o benefício espontâneo e desinteressadamente - "Há mais felicidade em dar do que em receber". O autor do benefício é mil vezes mais favorecido do que o beneficiado. Deus pode fazer o bem que eu faço - mas Deus não pode ser bom em meu lugar. Muito mais importante do que fazer o bem é ser bom. O beneficiado recebe o bem que eu faço - mas o benfeitor se torna bom pelo bem que pratica; logo, o principal beneficiado é o benfeitor; antes de realizar o bem ao outro, ele o realiza em si mesmo, pelo fato de ser bom; pelo fato de realizar nos outros os dons de Deus, realizando em si mesmo o próprio Deus ...
O veículo que manifesta o amor é a caridade. Pode haver caridade sem amor, mas não pode haver amor sem caridade. Pelo fato de eu fazer caridade a alguém, desperto em mim o amor, que estava dormente. E como todo estado em potencial torna-se dinâmico com a ação de dar espontaneamente, o meu amor cresce com a minha caridade.
E, o mais importante - para preservar a minha caridade de qualquer vestígio de egoísmo, auto complacência, ostentação, sentimentalismo doentio, ou outro elemento negativo, a minha caridade deve, segundo as palavras de Jesus, ser feita "ao menor de seus irmãos," isto é, aos mais imperfeitos e menos atraentes de meus semelhantes. Fazer caridade a uma criança simpática, a uma creatura bem formada, bela, amável e grata, é relativamente fácil; adotar uma criança sadia e bem educada pode ser até um ato de secreto egoísmo, mas querer bem e fazer bem a um mendigo esfarrapado, a alguma ruina humana sem esperança, a uma creatura feia e repelente, isso exige a morte de toda e qualquer espécie de egoísmo. São esses os "menores," de acordo com Jesus - e é aqui que está o caminho mais seguro e curto para a realização em Cristo.
Quando Francisco de Assis beijou as chagas do leproso, ele escolheu o último e o menor dos irmãos de Jesus - e nesse momento supremo, Francisco realizou em si o nascimento do Cristo, rompeu a muralha supostamente intransponível que o separava da sua verdadeira auto-realização; sobre as ruinas do seu ego humano exultou o seu Eu divino.
Pode ser que os pobres e doentes não necessitem de mim - mas eu necessito deles. Pode ser que eu não os "realize," que não lhes de saúde e bem-estar - mas é certo que eu me realizo e conquisto grande saúde e bem-estar espirituais.
Pode ser que nenhuma dessas ruinas humanas aproveite com os meus benefícios, que todos continuem pobres, doentes, ingratos - mas isso não é problema meu. Um homem, pelo menos, aproveitou da minha desinteressada caridade - e esse homem sou eu mesmo.
Será que o sol escolhe meticulosamente os terrenos férteis para irradiar a abundância da sua luz e do seu calor benéfico? Não é verdade que a maior parte dos seus benefícios solares cai nos oceanos ou nos desertos, onde não brotam plantas? E os raios que não atingem a nossa Terra nem outro planeta em condições de produzir vida! Dizem os cientistas que a temperatura acima da atmosfera é de um frio absoluto, entretanto, há bilhões de anos que o sol derrama a abundância da sua luz e do seu calor para dentro desses espaços vazios, onde nenhuma planta responde a seus constantes benefícios.
Tenho que servir ao Cristo nos outros para que o Cristo possa despertar em mim - só isso depende de mim, o resto fica para além do meu alcance ...
Em servindo alguma creatura simpática corro sempre o perigo de servir, secretamente, ao meu próprio Lúcifer, em vez de servir ao Cristo; possivelmente, faço cálculos de secreto egoísmo sobre o modo como o meu beneficiado venha a ser um dia o meu benfeitor, ou, pelo menos, se encha de reconhecimento e gratidão por mim - tamanha é a perversidade do nosso egoísmo camuflado em altruísmo e virtude!
Para evitar a possibilidade de futuras decepções e ingratidões, muitas pessoas preferem adotar um animal qualquer em vez de uma criança, porque o ser humano pode, um dia, vir a ser ingrato ou consagrar o seu principal amor a outra pessoa, o que seria doloroso para o secreto egoísmo do seu sentimental benfeitor. O animal, porém, não é ingrato e nem infiel.
Albert Schweitzer resolveu dedicar a sua vida ao serviço direto e imediato da parte mais infeliz da humanidade, num pobre país distante de uma África sofrida, para que ninguém lhe pudesse retribuir, nem sequer avaliar a grandeza do seu sacrifício; assim não havia perigo de que agisse em virtude de algum perverso, tirânico e bem disfarçado egoísmo; assim não havia perigo de reconhecimento, de aplausos ou gratidão por parte daqueles que ele beneficiou com seus serviços.
Enquanto o homem conserva um resquício de espírito interesseiro e mercenário, não realizou o Cristo dentro de si; serve ao Satanás que habita em si, julgando ser o Cristo. Para alguém prestar benefícios para a humanidade a fim de ver e ouvir seu nome nos jornais, nas emissoras, na televisão, ou saborear os louvores do alto dos púlpitos, dos lábios dos amigos, ou fulgurar numa placa de mármore ou bronze na entrada de algum templo, figurar em algum "livro de ouro" como exímio benfeitor desta ou daquela obra filantrópica - tudo isso é egoísmo e hipocrisia, disfarçado de altruísmo, e tanto mais perverso quanto mais camuflado de virtude.
O que mais seguramente preserva de contágios mórbidos a saúde da alma do homem, é o contato direto com as misérias humanas. Quem tem de suportar diariamente as costumeiras brutalidades da sociedade, as ingratidões dos que se beneficiam da caridade, dificilmente correrá perigo de cair vítima de orgulhosa auto complacência ou misticismo doentio. O rigor de uma ética sincera e desinteressada é um profilático infalível contra as bactérias do misticismo sentimental.
Texto revisado e adaptado, extraído do livro Assim Dizia o Mestre, págs. 174 a 179
No comments:
Post a Comment