Tuesday 19 January 2021

O EXEMPLO DE ALBERT SCHWEITZER

O mês de janeiro é comemorativo de mais um ano de aniversário de nascimento de Albert Schweitzer (1875-1965), teólogo, musicólogo, filósofo, médico, prolífico escritor, ordenado Ministro do Evangelho, missionário, e premiado em 1952, do Nobel da Paz.

Quase todos os conhecedores da vida desse herói e gênio humano, conhecem apenas os fatos históricos de sua vida; acham que o supremo ideal de Schweitzer era seu entusiasmo pela filantropia para com um povo necessitado da África.

Esquecem que sua trajetória de vida passou por diversos estágios de intensa avaliação de sua condição humana, em sua luta por autoconhecimento, até que com a idade de 30 anos ter decidido partir para a prática da “única coisa necessária,” sua auto-realização, que foi apenas uma consequência natural, um transbordamento da libertação individual, libertando a si mesmo através da caridade para com os africanos. Talvez um chamado interior, dada a sua condição de cristão praticante, talvez uma pequena recompensa pelo dano infligido pelos europeus durante a colonização daquele continente...

A. Schweitzer nasceu de uma conhecida família de luteranos na cidade de Strasbourg. Teve a vida feliz de menino normal de família educada e de boas condições financeiras. Cresce nesse ambiente e com um pouco mais de consciência de sua realidade, diante de tantos outros meninos de sua mesma idade, passando privações. Acorda uma certa manhã, após o retorno das férias, pensando novamente sobre o quanto ele tinha de ser grato. De sua janela, podia ouvir as canções dos pássaros e os sons de sua aldeia acordando. Era bom estar de volta em casa com seus queridos e compreensivos pais, suas irmãs e irmão. Seus estudos pareciam mais como um divertimento em planejar e preparar cada matéria; pensava nas noites agradáveis com o organista da igreja, examinando as partituras das cantatas de Bach e conversando sobre a maneira de como elas deveriam ser tocadas.

Mais uma vez lhe vem a pergunta que atormenta sua mente... Teria ele o direito a essa felicidade? Sentia o mesmo momento da infância, quando soube que seu amigo George Nitschelm não tinha o mesmo caldo suculento para o jantar. Era como uma pequena nuvem pairando no horizonte. Ele poderia se afastar e esquecer por um tempo, mas essa nuvem ainda estava lá, da mesma forma, crescendo lentamente e lentamente se aproximando. Por fim, ele sabia que não poderia mais ignorar. Enquanto houvesse pessoas no mundo sofrendo de dor e necessidades, não bastava que ele aceitasse sua própria felicidade e saúde perfeita, sem pensar nos outros. Existia, portanto, uma força interior que lhe dava poder de trabalhar e estudar dia e noite sem nunca saber o que era estar cansado e, um dia, poder ajudar a quem necessita. Ele tinha sido reservado da dor. Agora ele deve tentar de alguma forma aliviar a dor dos outros, devendo carregar sua própria parcela da miséria do mundo, em vez de virar as costas para ela e viver apenas para si mesmo.

Com certeza nesse momento, o significado das palavras na Bíblia, ocultas até então para ele, tornaram-se claras. “Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a sua vida por amor de mim, a salvará”. E deve ter se lembrado também da advertência de Dante, que: “O lugar mais quente do inferno é reservado para aqueles que, num momento de crise moral, procuram manter sua neutralidade”.

Numa manhã de junho de 1896, quando o sol entrou pelas janelas de seu quarto, Albert Schweitzer tomou uma decisão que se tornou vital em sua vida. Ele tinha vinte e um anos então, e que passaria os nove anos seguintes, até os trinta anos, fazendo o de costume: continuar seus estudos em ciência e música e trabalhar como pastor de igreja, como seu pai. Depois disso, ele desistiria dessas coisas e dedicaria o resto de sua vida a servir a humanidade de um modo mais direto. O que exatamente seria e como ele iria, não tinha certeza. Mas agora, depois de ter tomado essa decisão, sentiu uma sensação de paz interior.

Albert Schweitzer, esse exímio expoente do cristianismo místico-dinâmico, após terminado seus estudos e tomado decisões, não teve permissão da Sociedade Missionaria Evangélica de Paris, para trabalhar, como médico e cirurgião na África Equatorial Francesa, na vila de Lambaréné, hoje, Gabão! Mesmo assim, abandonou a Europa, que o endeusava, e demandou às matas da África equatorial, onde a população local era pobre e iletrada, onde ninguém o conhecia e compreendia o seu gênio, a sua grandeza, a sua filosofia, a sua música.

E nesse ambiente humilde e de total incompreensão, Schweitzer viveu por 52 anos.  Se em parte foi pela compaixão ao sofrimento daquele povo, foi mais por amor à “única coisa necessária,” a sua auto-realização. Na Europa ele teria sido admirado por sua inteligência; mas ele, porém, queria ser esquecido pelo mundo a fim de realizar-se em Deus. Se, nos últimos anos de sua vida, o mundo o exaltou, não foi por culpa dele; isto lhe aconteceu à revelia.

Albert Schweitzer resolveu dedicar a sua vida ao serviço direto e imediato da parte mais infeliz da humanidade, no interior da pobre e sofrida África, para que ninguém lhe pudesse retribuir, nem sequer avaliar a grandeza do seu sacrifício; assim não havia perigo de que agisse em virtude de algum perverso e bem disfarçado egoísmo; assim não havia nenhum perigo de reconhecimento, de aplausos ou gratidão por parte de seus beneficiados. Enquanto o homem conserva um resquício de espírito interesseiro e mercenário, não realizou o Cristo dentro de si; serve ao Satanás em si, julgando ser o Cristo.

Prestar benefícios para a humanidade afim de ver e ouvir o seu nome nos jornais, no radio, na televisão, ou saborear os louvores no alto do púlpito, dos lábios dos amigos, ou fulgurar numa placa de bronze ou mármore na entrada de algum templo, figurar em algum “livro de ouro” como exímio benfeitor dessa ou daquela obra filantrópica - tudo isso é egoísmo disfarçado de altruísmo, e tanto mais perverso quanto mais camuflado de virtude.

O homem profano acredita que esse despojamento é uma atitude egoísta, porque não compreende que auto-realização é o mais radical trabalho de libertação do ego.  Auto-realização é o cumprimento do destino supremo e único da existência humana, e esse conceito, alimentado em seu espírito durante a fase de autoconhecimento, culminou em seu afastamento de uma sociedade radicalizada nas coisas do “ter,” e não na promessa do “ser,” que é em si, a tarefa do homem consciente de sua condição espiritual.

Não existe nada que tão seguramente preserve de contágios mórbidos a saúde de nossa alma, como esse contato direto com as misérias humanas.

Quem tem de suportar as costumadas brutalidades da sociedade, as ingratidões dos seus beneficiados, dificilmente correrá perigo de cair vítima de orgulhosa complacência ou misticismo doentio. As durezas de uma ética sincera e desinteressada são um profilático infalível contra as bactérias do misticismo sentimental.

Quando Ramana Maharishi foi perguntado por um cientista inglês qual era o modo de fazer bem à humanidade, o grande vidente de Arunáchala respondeu: “O único modo de fazer o bem é ser bom.”  Ser bom quer dizer realizar-se em Deus, porque esta realização em Deus é o único modo de fazer bem aos homens.

E nesse ambiente de alarmante pobreza, de ver diariamente desfilar em seu hospital improvisado, uma procissão de desesperados, nada melhor do que vivenciar a realidade do verdadeiro herói, não que ele se julgasse um, quando certa vez afirmou:  “que não existem heróis da ação, mas sim heróis da renúncia e do sofrimento”.

Não apenas do ponto de vista da existência humana e suas misérias, ele se preocupava com toda sorte de vidas, pois era constante a presença de animais da selva, uns órfãos, cujos pais foram mortos por caçadores, outros, que atraídos pelo ambiente, perambulavam pela vila, a ponto de muitos deles serem adotados como animais de estimação. Devido à luz das lâmpadas a noite, muitos insetos eram atraídos, e a despeito do calor e humidade, Schweitzer fechava a casa e envolvia as lâmpadas com pequenas redes de proteção, para que esses insetos não morressem queimados, e a partir desse “imperativo bioético,” nasce sua reverência por qualquer espécie de vida no planeta, reverência essa que nasce do homem integral, pois o homem inconsciente vive na ignorância e na arrogância, entendendo ser ele, o supremo ser da creação. Afirmou que: “A ética consiste na responsabilidade perante tudo quanto vive, responsabilidade tão ampliada que carece de limites,” pois cada ser, por mais “insignificante”, é provido de responsabilidades que afetam beneficamente todas as vidas, nessa simbiose dinâmica que ainda abunda neste planeta, mas cujo equilíbrio vem sendo paulatinamente afetado pela intervenção do homem desavisado.

Em sua Reverência pela Vida, escreve: “Se eu sou um ser pensante, devo considerar os outros tipos de vida, como a minha própria vida, com igual reverência, pois todas as vidas anseiam por plenitude e desenvolvimento tão profundamente quanto a minha própria existência.”

E nesse sentido, adverte ainda que: “O homem só será realmente ético quando cumprir com a obrigação de ajudar toda a vida à qual possa acudir, e quando evitar de causar prejuízo a qualquer creatura viva. Não perguntará por que razão esta ou aquela vida merecerá a sua simpatia, como sendo valiosa, nem tampouco lhe interessará saber se, e a que ponto, ela ainda é suscetível de sensações. A vida como tal lhe será sagrada”; “A ideia fundamental do bem consiste em preservar a vida, favorece-la, em dar-lhe o mais elevado valor. O mal consiste em destruir a vida, ferindo-a, impedindo seu desenvolvimento.”

Sua fama se espalhou por toda a Europa, atingindo outros continentes. Seus livros traduzidos em muitas línguas; convites para palestras e discursos por muitos países, recitais de órgão das obras de Bach por toda a Europa, inclusive sessões em estúdio e discos de vinil gravados. Estudioso do cristianismo, seguiu em sua jornada de pastor de almas por longos anos, no entanto severas críticas fez à maneira com que o clero conduziu e interpretou as mensagens de Jesus, afirmando que o cristão de hoje, devidamente vacinado com o soro das teologias eclesiásticas, se tornou imune contra as investidas do Cristo do Evangelho; a injeção de um pseudo cristianismo manso e acomodado o imunizou contra o espírito revolucionário do Cristianismo místico e dinâmico das catacumbas e dos anfiteatros.

Ele viveu por um ideal, afirmando que a única coisa essencial é que nos esforçamos para que a luz se faça presente em nós mesmos. Nosso esforço será um dia reconhecido e, quando todas as pessoas possuírem essa luz interior, ela resplandecerá, mesmo que nos encontremos para conversar em plena escuridão!

Texto extraído em parte de escritos de Huberto Rohden, e do livro de Charlie May Simon, ALL MEN ARE BROTHERS, A Portrait of Albert Schweitzer.

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