O mês de janeiro é comemorativo de mais um ano de aniversário de nascimento de Albert Schweitzer (1875-1965), teólogo, musicólogo, filósofo, médico, prolífico escritor, ordenado Ministro do Evangelho, missionário, e premiado em 1952, do Nobel da Paz.
Quase todos os
conhecedores da vida desse herói e gênio humano, conhecem apenas os fatos
históricos de sua vida; acham que o supremo ideal de Schweitzer era seu
entusiasmo pela filantropia para com um povo necessitado da África.
Esquecem que sua
trajetória de vida passou por diversos estágios de intensa avaliação de sua
condição humana, em sua luta por autoconhecimento, até que com a idade de 30
anos ter decidido partir para a prática da “única coisa necessária,” sua
auto-realização, que foi apenas uma consequência natural, um transbordamento da
libertação individual, libertando a si mesmo através da caridade para com os
africanos. Talvez um chamado interior, dada a sua condição de cristão
praticante, talvez uma pequena recompensa pelo dano infligido pelos europeus
durante a colonização daquele continente...
A. Schweitzer
nasceu de uma conhecida família de luteranos na cidade de Strasbourg. Teve a
vida feliz de menino normal de família educada e de boas condições financeiras.
Cresce nesse ambiente e com um pouco mais de consciência de sua realidade,
diante de tantos outros meninos de sua mesma idade, passando privações. Acorda
uma certa manhã, após o retorno das férias, pensando novamente sobre o quanto
ele tinha de ser grato. De sua janela, podia ouvir as canções dos pássaros e os
sons de sua aldeia acordando. Era bom estar de volta em casa com seus queridos
e compreensivos pais, suas irmãs e irmão. Seus estudos pareciam mais como um
divertimento em planejar e preparar cada matéria; pensava nas noites agradáveis
com o organista da igreja, examinando as partituras das cantatas de Bach e
conversando sobre a maneira de como elas deveriam ser tocadas.
Mais uma vez lhe
vem a pergunta que atormenta sua mente... Teria ele o direito a essa
felicidade? Sentia o mesmo momento da infância, quando soube que seu amigo
George Nitschelm não tinha o mesmo caldo suculento para o jantar. Era como uma
pequena nuvem pairando no horizonte. Ele poderia se afastar e esquecer por um
tempo, mas essa nuvem ainda estava lá, da mesma forma, crescendo lentamente e
lentamente se aproximando. Por fim, ele sabia que não poderia mais ignorar.
Enquanto houvesse pessoas no mundo sofrendo de dor e necessidades, não bastava
que ele aceitasse sua própria felicidade e saúde perfeita, sem pensar nos
outros. Existia, portanto, uma força interior que lhe dava poder de trabalhar e
estudar dia e noite sem nunca saber o que era estar cansado e, um dia, poder
ajudar a quem necessita. Ele tinha sido reservado da dor. Agora ele deve tentar
de alguma forma aliviar a dor dos outros, devendo carregar sua própria parcela
da miséria do mundo, em vez de virar as costas para ela e viver apenas para si
mesmo.
Com certeza nesse
momento, o significado das palavras na Bíblia, ocultas até então para ele,
tornaram-se claras. “Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem
perder a sua vida por amor de mim, a salvará”. E deve ter se lembrado também da
advertência de Dante, que: “O lugar mais quente do inferno é reservado para
aqueles que, num momento de crise moral, procuram manter sua neutralidade”.
Numa manhã de
junho de 1896, quando o sol entrou pelas janelas de seu quarto, Albert
Schweitzer tomou uma decisão que se tornou vital em sua vida. Ele tinha vinte e
um anos então, e que passaria os nove anos seguintes, até os trinta anos,
fazendo o de costume: continuar seus estudos em ciência e música e trabalhar
como pastor de igreja, como seu pai. Depois disso, ele desistiria dessas coisas
e dedicaria o resto de sua vida a servir a humanidade de um modo mais direto. O
que exatamente seria e como ele iria, não tinha certeza. Mas agora, depois de
ter tomado essa decisão, sentiu uma sensação de paz interior.
Albert Schweitzer,
esse exímio expoente do cristianismo místico-dinâmico, após terminado seus
estudos e tomado decisões, não teve permissão da Sociedade Missionaria
Evangélica de Paris, para trabalhar, como médico e cirurgião na África
Equatorial Francesa, na vila de Lambaréné, hoje, Gabão! Mesmo assim, abandonou
a Europa, que o endeusava, e demandou às matas da África equatorial, onde a
população local era pobre e iletrada, onde ninguém o conhecia e compreendia o
seu gênio, a sua grandeza, a sua filosofia, a sua música.
E nesse ambiente
humilde e de total incompreensão, Schweitzer viveu por 52 anos. Se em parte foi pela compaixão ao sofrimento
daquele povo, foi mais por amor à “única coisa necessária,” a sua
auto-realização. Na Europa ele teria sido admirado por sua inteligência; mas
ele, porém, queria ser esquecido pelo mundo a fim de realizar-se em Deus. Se,
nos últimos anos de sua vida, o mundo o exaltou, não foi por culpa dele; isto
lhe aconteceu à revelia.
Albert Schweitzer
resolveu dedicar a sua vida ao serviço direto e imediato da parte mais infeliz
da humanidade, no interior da pobre e sofrida África, para que ninguém lhe
pudesse retribuir, nem sequer avaliar a grandeza do seu sacrifício; assim não
havia perigo de que agisse em virtude de algum perverso e bem disfarçado
egoísmo; assim não havia nenhum perigo de reconhecimento, de aplausos ou
gratidão por parte de seus beneficiados. Enquanto o homem conserva um resquício
de espírito interesseiro e mercenário, não realizou o Cristo dentro de si;
serve ao Satanás em si, julgando ser o Cristo.
Prestar benefícios
para a humanidade afim de ver e ouvir o seu nome nos jornais, no radio, na
televisão, ou saborear os louvores no alto do púlpito, dos lábios dos amigos,
ou fulgurar numa placa de bronze ou mármore na entrada de algum templo, figurar
em algum “livro de ouro” como exímio benfeitor dessa ou daquela obra
filantrópica - tudo isso é egoísmo disfarçado de altruísmo, e tanto mais
perverso quanto mais camuflado de virtude.
O homem profano
acredita que esse despojamento é uma atitude egoísta, porque não compreende que
auto-realização é o mais radical trabalho de libertação do ego. Auto-realização é o cumprimento do destino
supremo e único da existência humana, e esse conceito, alimentado em seu
espírito durante a fase de autoconhecimento, culminou em seu afastamento de uma
sociedade radicalizada nas coisas do “ter,” e não na promessa do “ser,” que é
em si, a tarefa do homem consciente de sua condição espiritual.
Não existe nada
que tão seguramente preserve de contágios mórbidos a saúde de nossa alma, como
esse contato direto com as misérias humanas.
Quem tem de
suportar as costumadas brutalidades da sociedade, as ingratidões dos seus
beneficiados, dificilmente correrá perigo de cair vítima de orgulhosa
complacência ou misticismo doentio. As durezas de uma ética sincera e
desinteressada são um profilático infalível contra as bactérias do misticismo
sentimental.
Quando Ramana
Maharishi foi perguntado por um cientista inglês qual era o modo de fazer bem à
humanidade, o grande vidente de Arunáchala respondeu: “O único modo de fazer o
bem é ser bom.” Ser bom quer dizer
realizar-se em Deus, porque esta realização em Deus é o único modo de fazer bem
aos homens.
E nesse ambiente
de alarmante pobreza, de ver diariamente desfilar em seu hospital improvisado,
uma procissão de desesperados, nada melhor do que vivenciar a realidade do
verdadeiro herói, não que ele se julgasse um, quando certa vez afirmou: “que não existem heróis da ação, mas sim
heróis da renúncia e do sofrimento”.
Não apenas do
ponto de vista da existência humana e suas misérias, ele se preocupava com toda
sorte de vidas, pois era constante a presença de animais da selva, uns órfãos,
cujos pais foram mortos por caçadores, outros, que atraídos pelo ambiente,
perambulavam pela vila, a ponto de muitos deles serem adotados como animais de
estimação. Devido à luz das lâmpadas a noite, muitos insetos eram atraídos, e a
despeito do calor e humidade, Schweitzer fechava a casa e envolvia as lâmpadas
com pequenas redes de proteção, para que esses insetos não morressem queimados,
e a partir desse “imperativo bioético,” nasce sua reverência por qualquer
espécie de vida no planeta, reverência essa que nasce do homem integral, pois o
homem inconsciente vive na ignorância e na arrogância, entendendo ser ele, o
supremo ser da creação. Afirmou que: “A ética consiste na responsabilidade
perante tudo quanto vive, responsabilidade tão ampliada que carece de limites,”
pois cada ser, por mais “insignificante”, é provido de responsabilidades que
afetam beneficamente todas as vidas, nessa simbiose dinâmica que ainda abunda
neste planeta, mas cujo equilíbrio vem sendo paulatinamente afetado pela
intervenção do homem desavisado.
Em sua Reverência
pela Vida, escreve: “Se eu sou um ser pensante, devo considerar os outros tipos
de vida, como a minha própria vida, com igual reverência, pois todas as vidas
anseiam por plenitude e desenvolvimento tão profundamente quanto a minha
própria existência.”
E nesse sentido,
adverte ainda que: “O homem só será realmente ético quando cumprir com a
obrigação de ajudar toda a vida à qual possa acudir, e quando evitar de causar
prejuízo a qualquer creatura viva. Não perguntará por que razão esta ou aquela
vida merecerá a sua simpatia, como sendo valiosa, nem tampouco lhe interessará
saber se, e a que ponto, ela ainda é suscetível de sensações. A vida como tal
lhe será sagrada”; “A ideia fundamental do bem consiste em preservar a vida,
favorece-la, em dar-lhe o mais elevado valor. O mal consiste em destruir a
vida, ferindo-a, impedindo seu desenvolvimento.”
Sua fama se
espalhou por toda a Europa, atingindo outros continentes. Seus livros
traduzidos em muitas línguas; convites para palestras e discursos por muitos
países, recitais de órgão das obras de Bach por toda a Europa, inclusive
sessões em estúdio e discos de vinil gravados. Estudioso do cristianismo,
seguiu em sua jornada de pastor de almas por longos anos, no entanto severas
críticas fez à maneira com que o clero conduziu e interpretou as mensagens de
Jesus, afirmando que o cristão de hoje, devidamente vacinado com o soro das
teologias eclesiásticas, se tornou imune contra as investidas do Cristo do
Evangelho; a injeção de um pseudo cristianismo manso e acomodado o imunizou
contra o espírito revolucionário do Cristianismo místico e dinâmico das
catacumbas e dos anfiteatros.
Ele viveu por um
ideal, afirmando que a única coisa essencial é que nos esforçamos para que a
luz se faça presente em nós mesmos. Nosso esforço será um dia reconhecido e,
quando todas as pessoas possuírem essa luz interior, ela resplandecerá, mesmo
que nos encontremos para conversar em plena escuridão!
Texto extraído em
parte de escritos de Huberto Rohden, e do livro de Charlie May Simon, ALL MEN
ARE BROTHERS, A Portrait of Albert Schweitzer.
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