“Por ciúme e discórdia, Paulo ostentou o preço da paciência. Sete vezes preso, exilado, apedrejado, mensageiro no Oriente e no Ocidente, recebeu a ilustre glória por sua fé. Ensinou ao mundo toda a justiça e chegou aos confins do Ocidente, dando testemunho diante das autoridades. Assim deixou o mundo e foi em busca do lugar santo, ele, que se tornou o mais ilustre exemplo de paciência.” Carta de Clemente Romano aos Coríntios (século I)
Na alvorada do Cristianismo, nenhum homem prestou tão intenso trabalho como Paulo de Tarso. Espírito dinâmico, de ampla visão, reuniu em sua pessoa as três grandes culturas da época - a hebraica, grega e romana; em síntese, o apóstolo por excelência.
Nenhum outro homem teve sobre a evolução histórica do Cristianismo maior e mais decisiva influência do que Paulo de Tarso. Percorrendo o oriente e o ocidente, levou ao núcleo da jovem comunidade cristã, inumeráveis multidões de almas, povos e países inteiros.
A existência desse homem singular se divide em dois períodos, de duração quase igual, mas de caráter diametralmente oposto um ao outro. Se pode até mesmo, falar em duas vidas desse intrépido evangelizador, assim como também usava dois nomes, Saulo e Paulo: 30 anos de Tarso a Damasco, e 30 anos de Damasco a Ostia. E, tanto na primeira como na segunda fase, ele desempenha integralmente o seu papel. Adversário mortal de atitudes obscuras e de posições indefinidas, Paulo cumpre a sua tarefa sempre com corpo e alma, com todas as fibras do seu ser, com toda a veemência do seu gênio, com toda a paixão da sua natureza de fogo. A princípio, combate Jesus sem tréguas nem descanso, porque vê nele o grande inimigo da religião revelada; e depois o adora com a máxima sinceridade do coração, e o quer ver adorado pelo mundo inteiro, porque o reconhece como o Redentor da humanidade.
No centro da vida de Paulo está o Cristo - ontem como inimigo, hoje como amigo; a princípio, alvo de ódio; depois, objeto de amor e glorificação.
Paulo não conhece meias medidas. Detesta a mediocridade. É o tipo autêntico do cristão integral.
E, em toda essa vivacidade e entusiasmo, nada há de fanatismo; tudo é pautado por uma serena racionalidade, que mais parece ocidental do que oriental.
... Às portas de Damasco soara a hora do despertamento para o feroz perseguidor de Cristo: "Saulo, Saulo, por que me persegues? ...
Saulo cai por terra - e desmorona também o soberbo castelo da sua orgulhosa filosofia judaica ... Ruínas e escombros ... Não ficou pedra sobre pedra ...
Tão intensa é a luz do céu que apaga todas as luzes da terra. Saulo está cego. Completa escuridão por espaço de três dias. É necessário que, por algum tempo, a terra se cale para que o céu possa falar ...
Nesse tempo de escuridão, silêncio e introspecção, Saulo procura orientar os seus pensamentos, no meio do incógnito universo que lhe despontou na alma.
“Quem és tu, Senhor?”
“Eu sou Jesus.”
Desde essa hora dramática, uma só ideia, um só ideal domina a Paulo: tornar Jesus conhecido, amado e servido de todos os homens.
Foi nesta disposição psíquica que o maior pioneiro do Evangelho iniciou a sua estupenda carreira - cuja grandeza e prosperidade dão eloquente testemunho os “Atos dos Apóstolos” e as “Epístolas” do incomparável mensageiro de Cristo. Desde início, ele se cercou de uma seleta e disciplinada legião de auxiliares - homens e mulheres, moços e velhos - e com eles saiu à conquista espiritual do mundo. Por amor a esse ideal se deixou ser perseguido e caluniado, escarnecido e flagelado, condenado à morte e degolado. E deixou para trás também, o que mais lhe feriu o coração, Abigail, filha adotiva do rabino Gamaliel, a paixão de sua vida, que pelas tramas do destino, era a irmã de Estevão, a quem mandou apedrejar! Mas, apesar de tudo, no meio dos seus sofrimentos escreve: “Meus irmãos, eu transbordo de júbilo por entre as minhas tribulações ... Cristo é minha vida, e a morte me é lucro ... Já não sou eu que vivo - mas é o Cristo que vive em mim” ...
Paulo é um livro que só fala de Cristo.
É uma chama que só arde por Cristo.
É um gênio que só pensa em Cristo.
É uma vontade que só quer a Cristo.
É um herói que só luta por Cristo.
É uma alma que só vive de Cristo, por Cristo e para Cristo.
O período histórico que afetou a vida de Paulo de Tarso, se assemelha notavelmente aos tempos atuais: a prepotência do materialismo pagão, por um lado - e o domínio do fetichismo religioso, por outro.
Esses dois inimigos - o paganismo materialista e o judaísmo fetichista - ameaçavam bloquear a fonte do Cristianismo nascente.
Contra esses adversários mortais do Evangelho desce à arena o destemido gladiador de Cristo.
Filho de fariseus aferrados a um estreito formalismo religioso, Paulo conhecia o perigo que existe na hipertrofia do corpo e atrofia da alma da religião.
Educado num dos maiores centros do paganismo helênico-romano, ele experimentou, na sua mocidade, a ação funesta do paganismo grosseiramente sensual sobre as aspirações superiores do espírito humano.
O pagão, embora impotente para se erguer do abismo, reconhecia pelo menos a sua miséria moral e mantinha assim, aberta, a porta para a redenção - ao passo que o judeu, deslumbrado pelo esplendor da liturgia, perdera a noção da sua impotência espiritual e procurou narcotizar com o entorpecente das formas externas a vacuidade da sua consciência religiosa.
E foi por essa razão que Paulo encontrou os maiores obstáculos entre os judeus do que entre os pagãos. É que o Evangelho não cala numa alma que não esteja intimamente convencida da sua miséria moral e da necessidade do auxílio divino.
A sinagoga, depois de séculos de glórias espiritualistas, decaiu para a idolatria das formalidades externas. “Sepulcros caiados” - é o termo clássico que Jesus criou para definir a índole dos chefes religiosos de Israel: a hipócrita vacuidade interior disfarçada por um exuberante ritualismo exterior. A desgastada ideologia da piedade tradicional não podia servir de base e norma ao vigoroso movimento espiritualista inaugurado por Jesus. Divina e pura a princípio, a religião judaica degenerara nessa teia de exterioridades humanas, que não satisfazia os espíritos sinceramente religiosos.
É esta, aliás, o destino de todas as coisas divinas: quando lançadas ao meio dos homens e entregues a mãos profanas, não tardam a perder o esplendor original, e, em vez da fascinante beleza dessa forma inicial, aparece, geralmente, a repelente deformidade de uma caricatura.
O Evangelho, nascido num ambiente de decadência religiosa, corria perigo de ser agarrado pelos tentáculos construtores do vazio formalismo da sinagoga, que então levava o rótulo de “religião revelada”.
Jesus ofereceu em sacrifício a sua juventude na luta contra a adulteração da religião e em defesa do ideal espiritualista.
Paulo, o seu maior discípulo, segue o exemplo de Jesus. Às portas de Damasco tomba o mais ferrenho defensor do ritualismo mosaico, Saulo, o fariseu - e nasce o mais ardente paladino do espiritualismo cristão, como Paulo, o apóstolo. E logo de início ele compreende que o maior perigo para o Evangelho está no culto exagerado das formalidades vazias. Compreende que é mais fácil erguer o edifício do Cristianismo no vale do paganismo do que sobre as ruinas religiosas de Israel.
O triunfo definitivo do Evangelho sobre o materialismo pagão e a sua preservação das malhas asfixiantes do judaísmo cerimonial, foi a obra titânica de Paulo de Tarso. O Cristianismo existiria também sem Paulo; mas só Deus sabe qual teria sido a marcha do Evangelho através dos séculos, se na alvorada desse movimento cristão, faltasse esse espírito clarividente, esse homem singular que, indiferente a sucessos e falhas, abriu caminho dessa nova mensagem espiritual por entre um mundo de obstáculos e um inferno de perseguições; esse homem que enfrentou desertos e florestas, galgou montanhas e transpôs precipícios, encarou sem medo as intempéries da natureza e a perversidade dos homens e plantou a sanguinolenta bandeira da cruz da redenção nas mais distantes partes da Terra. Mais arrojado que as próprias legiões dos Césares, esse desbravador de Deus penetra por terras desconhecidas e proclama o nome de Jesus onde nem tinham soado ainda, as trombetas imperiais ...
O homem só é verdadeiramente grande quando tem a coragem de viver as suas ideias e morrer por seus ideais ...
Que diria Paulo de Tarso, se regressasse em nossos dias? ... Não teria de libertar o Evangelho mais uma vez desse polvo de mil e uma formalidades vazias que ameaçam sufocar a alma do Cristianismo? ...
A religiosidade de milhões de cidadãos está circunscrita ao funesto mal das pompas externas, das sonoras vacuidades e dos discursos exagerados nos púlpitos, das encenações teatrais, da carência de penetração espiritual, da ausência de convicção íntima, da falta de uma consciência nítida dos motivos da sua fé.
Na maioria das vezes, a religiosidade passa a ser inimiga mortal da religião! ...
A vasta maioria dos integrantes do catolicismo oficial vive divorciada da sociedade, segregado do mundo das duras e prosaicas realidades de cada dia. Não quer saber da fumaça das fábricas, do desconforto das habitações pobres, da miséria dos proletários, do elemento profano das casernas militares; prefere viver no ambiente tépido de um misticismo religioso, escutar as melodias sugestivas de um coral, aspirar o suave aroma dos incensos, contemplar as velas acesas e as flores dos altares - enquanto lá fora, filósofos pagãos corroem os fundamentos da fé e demagogos de todos os partidos políticos agitam as massas, envenenam a alma do povo e preparam a destruição universal da civilização cristã de longos séculos ...
Se faz, portanto, urgentemente necessário recolocar o Evangelho bem no meio da vida real da sociedade e dos povos. Não há um Cristo domingueiro e um Cristo da semana; não há um Cristo das igrejas e outro da sociedade; há um só Cristo, um só Redentor, um só Medianeiro entre Deus e os homens ...
É necessária uma intensa e persistente campanha de espiritualização, campanha de evangelização, campanha de interiorização, campanha de “cristianização” e filtrar as impurezas do catolicismo tradicional.
Se Paulo reaparecesse seria este o seu primeiro e, talvez, único trabalho; restituir à nossa dispersa e anêmica religiosidade o vigoroso caráter Cristo-cêntrico - restaurar tudo em Cristo, como ele escrevia no primeiro século. A vasta maioria dos católicos ainda vivem num catolicismo vago, puramente tradicional, numa espécie de sonambulismo inconsciente ou semiconsciente; conhecem os seus “santos” e ignoram a Cristo; recitam mecanicamente as fórmulas do seu devocionário, mas nunca leram uma página sequer do Evangelho - vivem e morrem sem terem descoberto o espírito do Cristo e a alma da religião ...
Daí essa frieza religiosa do povo. Daí essa mania de gozos e prazeres. Daí a estupenda facilidade com que abraçam qualquer ideologia que lhes apresente em cores simpáticas, a pessoa e a doutrina de Cristo ou de outros profetas e mestres espirituais, onde afirmem ser o único caminho da salvação. Portanto, não é de se estranhar a luta sanguínea em que se debatem os diferentes credos religiosos!
“O reino de Deus não vem com aparato exterior - o reino de Deus está dentro de vós” ... “No meio de vós está aquele a quem vós não conheceis” ...
Nos dias de hoje, quando o Evangelho é ignorado pela maior parte dos que o deviam saber e viver; quando a religião de muitos se reduz a simples cerimonias, ritos e fórmulas; quando o credo anda divorciado dos mandamentos das leis de Deus, e a ética em conflito com os que se entregam às práticas espirituais; quando inúmeros homens veem na religião algo de duvidoso, de menos digno; quando o paganismo das praias e dos casinos, das ruas e dos salões desmente o catolicismo das igrejas e das procissões - hoje, mais do que nunca, importa lançar ao meio desse ambiente crepuscular de estagnação espiritual a vigorosa alvorada de um Cristianismo juvenil e forte, e planejar aos olhos do mundo o perfil de um homem que sabia viver a sua fé no espírito do Cristo em todos os atos da sua vida.
Paulo de Tarso, quando intuído espiritualmente, se revela um profeta além do tempo e espaço, um vidente da Realidade Cósmica, um mensageiro do eterno Presente, equidistante do passado e do futuro. As suas palavras não devem ser analisadas intelectualmente, mas vividas e vivenciadas intuitivamente. Ele, o maior pioneiro do Evangelho, é bem uma bandeira para os tempos de hoje, ele, que reduziu a uma perfeita unidade o dualismo entre a fé e a vida, a ponto de poder exclamar: “Minha vida é o Cristo; já não vivo eu - Cristo é que vive em mim”.
Texto revisado, acrescentado e extraído do livro Paulo de Tarso, em Preliminares.
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