Monday 19 July 2021

A ALMA DO EVANGELHO

Temor de castigo, e esperança de prêmios, são expectativas relativamente necessárias para todas as almas humanas cuja evolução ainda não tenha atingido a sua plenitude e perfeição, mas que não devem, por isto, ser destruídas nessas almas. O que se condena, é que esses motivos sejam apresentados como a quintessência do Cristianismo, como a culminância da ética do cristão. A transição dos motivos do temor e da esperança, visceralmente dualistas, para o motivo do amor, essencialmente unificador, é inevitável, criando na alma, um clima de perfeita identidade com Deus. A fé e a esperança são para os bons que ainda se acham em peregrinação ao mundo espiritual - mas o amor absoluto é para os perfeitos que já chegaram ao fim da jornada. No céu, não há ninguém que tenha fé ou esperança, porque neles a fé se transformou em visão ou conhecimento intuitivo, e a esperança acabou sendo conquistada - o amor, porém, continua e se potencializa cada vez mais. Por isto, o “maior dos três é o amor”, como afirmou Paulo de Tarso.

Infelizmente - é aqui que tocamos numa das chagas vivas do nosso Cristianismo moderno - estuda-se o corpo do Cristianismo, ou melhor, da teologia cristã, e não se vive a alma do Evangelho. Uns contentam-se com o cumprimento rotineiro e cego das ordens emanadas da autoridade eclesiástica, e identificam essa obediência com o Cristianismo; outros passam a vida toda analisando a Bíblia, palavra por palavra, sem lhe perceberem o espírito, e julgam-se cristãos perfeitos por terem estudado cada página desse livro. Vivem e morrem sem terem descoberto a alma do Evangelho, sem terem encontrado a essência da mensagem de Jesus dentro do Cristianismo, que está contida nos dois primeiros mandamentos, o do amor integral em Deus e do amor universal entre os homens: “Amarás o Senhor teu Deus com toda a tua alma, com toda a tua mente, com todo o teu coração, e com todas as tuas forças – e amarás o teu próximo como a ti mesmo – nestes dois mandamentos se baseia toda a lei.”

Esses dois mandamentos representam a consciência mística da paternidade única de Deus, manifestada pela vivência ética da fraternidade universal entre os homens – esta é a quintessência da sua mensagem, este é o único Evangelho de verdade. Esta é a verdadeira e única religião; as outras, são teologias fragmentadas, ilusórias e arbitrárias.

Pandita Ramabai (1858-1922), uma influente líder cristã da Índia, escreve que se converteu do Bramanismo para o Cristianismo e nele, viveu durante 10 anos, observando meticulosamente todos os preceitos da sua igreja, sem ter se encontrado com Jesus. Só mais tarde, em Londres, quando se entregou a uma vida de profunda e intensa comunhão com Deus pela oração e meditação, é que ela descobriu, finalmente, esse Cristo.

Milhões de cristãos se acham no caso de Pandita Ramabai, com a diferença, talvez, de nem descobrirem Jesus depois de dez anos de Cristianismo. Esses cristãos que o ignoram são incapazes de compreender que a experiência da sua identidade com Deus - do “reino de Deus dentro deles”, da sua “alma naturalmente cristã” - possa ser motivo eficaz e infalível para evitarem o pecado; são capazes mesmo de pensar que a experiência dessa identidade lhes possa roubar o horror ao pecado.

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Pandita Ramabai foi uma importante ativista social na Índia do século XIX com uma imensa contribuição na emancipação da mulher; contra a ideologia das castas, dos casamentos infantis, das condições da saúde feminina, liberdade para as mulheres e demais questões sociais. Ficou órfã aos 16 anos com a morte dos pais durante a grande fome que se abateu em partes da Índia durante 1876 a 1878, e passou a viajar pelo país, expondo suas ideias e sabedoria adquirida durante sua vivência com o pai que lhe ensinou os textos sânscritos que discursava pelas comunidades onde passava. Adulta, viajou à Londres onde se formou em medicina, depois viajando aos Estados Unidos e Canadá onde discursava sobre seus conhecimentos, publicando um de seus livros mais importantes, The High-Caste Hindu Woman “A Mulher Indú de Alta Casta”, que foi o primeiro livro que ela escreveu em inglês. Por ser uma mulher da casta brâmane, denunciou nesse livro, os aspectos mais sombrios da vida das mulheres indianas, incluindo crianças noivas e viúvas infantis, expondo a opressão sofrida por elas na Índia sob o domínio britânico. Um de seus comentários sobre a questão da mulher, feito em 1882, foram resumidas na seguinte frase de que: “a vasta maioria dos homens instruídos deste país se opõem à educação feminina e à posição apropriada das mulheres. Se eles observam nelas a menor falha, magnificam essa falha transformando um grão de mostarda em uma montanha, tentando assim arruinar o caráter da mulher.”

Infelizmente, todo esforço idealista em qualquer esfera, sempre esbarra na crítica medíocre e à condenação. Hoje, passados quase 100 anos de sua morte, a Índia é um dos países que mais oprime a mulher em todos os campos e as estatísticas de estupros na sociedade indiana são alarmantes e a maior do mundo!

Texto revisado, extraído dos livros, Evangelho ou Teologia? e Orientando para a Auto-realização

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