A divisão dos seres humanos em profanos e iniciados é antiquíssima, e, talvez, a única realmente adequada, do ponto de vista da íntima essência do homem.
Qual é a diferença entre um homem profano e um iniciado nas coisas do espírito?
Em primeiro lugar, é importante saber o que não se deve entender por iniciado ou iniciação. Com certeza, não é aquele que tem a habilidade de desvendar ou dar solução à misteriosas fórmulas das chamadas escolas iniciáticas; e a ideia errônea que se tem é que, caso alguém possa dar a solução, é chamado de iniciado, caso contrário, é chamado de profano.
Até mesmo o Rabi Nicodemos, julgava que a iniciação ou entrada no Reino de Deus dependesse de algo que a gente fizesse, tanto assim que ele foi se encontrar com o maior dos iniciados que a raça humana conhece, a fim de saber qual ação a tomar para ingressar no universo espiritual. A essa pergunta, sobre o que o homem deva fazer para se tornar um iniciado, Jesus responde dizendo sobre o que o homem deve Ser para participar do Reino de Deus. É necessário, diz ele, renascer em espírito. Nicodemos, embora fisicamente vivo, estava espiritualmente morto. Poderíamos até definir o estado do profano como sendo um homem “ainda morto”, ou “ainda não-vivo”, espécie de feto em estado de gestação mais ou menos adiantado ou atrasado; é possível que venha a nascer um dia, se a sua evolução ao encontro da vida eterna correr normalmente; mas é possível que também o fim dessa gestação espiritual venha a ser um aborto devido à má formação e a consequente morte, ou ao encontro da morte eterna, da desintegração do espírito.
Ninguém pode vir a ser um iniciado pelo simples fato de fazer isto ou aquilo, pois é absurdo e intrinsecamente contraditório fazer algo sem primeiro Ser algo ou alguém. “A existência precede a essência”, ou ao Ser, conforme Tomás de Aquino, que todo ser humano é o único responsável por suas ações, porque escolhemos quem somos. Os humanos nascem como um “nada” e então se tornam quem são por meio de suas escolhas, ações, reações e atitudes; não se pode agir ou fazer algo sem que primeiro se Seja alguém, pois o Ser é a causa do fazer, e a causa é logicamente anterior ao efeito.
Se eu pudesse me tornar um iniciado fazendo certas coisas, ou pelo fato de que alguém possa fazer algo por mim; se eu, por exemplo, pudesse ser iniciado no Reino de Deus por uma fórmula secreta, ritual ou processo sacramental, um conjunto mágico e misterioso de palavras que me lançariam automaticamente no mundo espiritual sem a competente mudança interna de meu Ser - se isso fossem possível, haveria contrabando até no Reino de Deus, e o mundo de Deus deixaria de ser um Cosmos para se tornar o caos.
No entanto, o Reino de Deus é o único reino onde não há contrabando ou entrada ilegal, por alguma porta secreta escondida, seja por dinheiro ou sagacidade ou pelo trabalho e misericórdia de bons amigos e protetores.
No Reino de Deus só se pode entrar honestamente e pela porta da frente, isto é, pelo fato de Ser alguém, de ser precisamente o que se deve ser no nível eterno, para entrar nele; e este direito de entrada consiste precisamente no fato de o homem “renascer em espírito”, uma “nova creatura em Cristo”.
Convém entender o seguinte: se é certo que nenhum homem pode entrar no Reino de Deus por fazer alguma coisa que não seja ele mesmo, evolvendo seu verdadeiro Eu espiritual, a sua auto-realização, por outro lado também é certo que o homem que é alguém pelo renascimento espiritual não deixará de fazer algo, e até exceder nisso; ou melhor, esse homem é o único homem que pode fazer algo de real e positivo pela verdadeira evolução da humanidade.
A iniciação é um processo místico pelo qual o homem começa a ser alguém no plano da realidade eterna; e esse novo ser, essa nova creatura em Cristo não tardará a revelar-se como o único fator positivo e dinâmico no vasto drama da evolução ascensional do gênero humano, que, sem esse fator positivo, não passaria de uma série ou aglomeração de fatores negativos. Mas, no momento em que adicionarmos a essa longa série de fatores negativos repletos de desoladora vacuidade, um fator positivo, todas as pequenas e grandes vacuidades ficarão repletas da positiva realidade. E essa positiva realidade é que redime todos as negatividades do chamado “pecado original”, da sua vacuidade.
É exatamente o que acontece quando um homem renasce pelo espírito, quando um profano passa a ser um iniciado, de negativo se torna positivo, de morto que era nasce para a vida. E, daí por diante, sendo vivo, pode fazer o que nenhum morto pode realizar. O que um ainda-não-vivo poderia fazer (se algo pudesse fazer) seriam, quando muito, atos não-vitais; antes de poder fazer qualquer ato vital, tem que ser vitalizado, vivificado pelo espírito sempre vivo e sempre vitalizador.
Ser um iniciado é estar identificado com Deus pelo espírito divino, ou, nas palavras de Jesus: “A vida eterna é esta: que os homens te conheçam a ti, ó Pai, como sendo o único Deus verdadeiro”; ou ainda, nesta frase, em que Jesus nos diz que o céu, a vida eterna, consiste em “Amar a Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda mente e com todas as forças”, isto é, o novo Ser do homem místico, do qual brotará a espontânea atitude de “Amar o próximo como a si mesmo”, do homem ético.
A verdadeira iniciação nada tem a ver com fórmulas misteriosas. Consiste tão-somente nesta coisa singela e imensa, que é o encontro pessoal com Deus, essa estupenda revolução cósmica dentro da alma humana e a subsequente sintonização da vida cotidiana, interna e externa, com essa grande e decisiva experiência.
Há pessoas que nunca tiveram esse encontro pessoal com Deus, são os ainda cegos, os ainda mortos, os ignorantes da espiritualidade. Entretanto, há dois grupos nesta classe: os que nem deram ainda o primeiro passo nessa grande jornada, e os que já deram o primeiro passo, e talvez muitos outros, achando-se em qualquer ponto do caminho, mas não atingiram ainda a meta final. Os do primeiro grupo são os descrentes, os agnósticos, os chamados ateus, os que, além de não terem experiência da iluminação espiritual, nem sequer creem na existência dessa luz. Os do segundo grupo são os crentes, os peregrinos de boa vontade, os que firmemente admitem a realidade da Luz, embora não tenham ainda aberto os olhos para essa luz integral da Realidade. Se continuarem a andar em linha reta, rumo à luz, esses crentes de hoje virão a ser os sapientes de amanhã, porque o crer é o caminho para o saber.
Jesus não era um crente, mas sim um sapiente; não acreditava apenas em Deus, como os viajores da fé nebulosa, mas conhecia a Deus, como todos os que atingiram o termo final da jornada e possuem a visão direta e imediata da eterna Realidade, e podem dizer em verdade: “Eu e o Pai somos um.”
Nas esferas celestes não existem crentes nem descrentes, só os sapientes de Deus. Mas, não haveria sapientes no céu se na terra não houvesse crentes. De resto, essa ciência-de-Deus, essa Teo-sapiência, é que é o céu. O homem está no céu quando esse céu do conhecimento intuitivo de Deus está no homem. O homem espiritual leva consigo o seu céu, por onde quer que vá. E, como esse homem, consciente ou inconscientemente, irradia em volta de si o seu céu interior, todas as almas receptivas podem, na presença de um verdadeiro iniciado, adivinhar o que seja o céu e ter dele um gozo antecipado de inexplicável fascínio.
O único meio de fazer bem aos outros, e de fazer com que esses sejam bons, é ser bom. Qualquer tentativa que o homem que não é bom faça para fazer com que os outros sejam bons, é um flagrante contrassenso, uma hipocrisia, uma vez que é matemática e metafisicamente impossível que um homem que não possua bondade interior possa contribuir para que outros venham a ser bons. Só o homem internamente bom é que é um canal aberto por onde fluem livremente as águas redentoras da eterna Divindade; o homem internamente mau, embora externamente bom, caridoso, solidário, é um canal obstruído, por onde não fluem as águas divinas e purificadoras. Ninguém pode ser bom por mim, assim como eu não posso ser bom pelos outros, porque no reino de Deus não há contrabando e desordem.
Portanto, o iniciado é um homem internamente bom, o homem bom por excelência.
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Ramana Maharishi, quando interpelado sobre o que é o pecado original, respondeu sintética e acertadamente:- “É a ilusão de uma existência pessoal separada”. Esta ilusão separatista do ego tirânico é uma herança de toda natureza humana, uma dádiva de berço, ao passo que a verdade da permanente e essencial união com o Infinito é uma conquista da sua consciência, e esta união essencial pode e deve revelar-se numa união existencial.
Texto revisado, extraído do livro Profanos e Iniciados
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