A humanidade que nós conhecemos não é, de forma alguma, “feita à imagem e semelhança de Deus,” a que se refere o Gênesis. Ninguém pode ver no homem, a chamada coroa da creação – nesse animal mamífero, omnívoro, bípede, ligeiramente intelectualizado, cuja inteligência, o tornou a mais perigosa das feras que habitam o planeta. A intelectualização do instinto fez do homem um monstro de ganância e agressividade, cujas garras e dentes se aperfeiçoaram em forma de armas de destruição em massa; fez dele uma repugnante caricatura de sexualismo indecoroso e um inferno de doenças físicas e mentais, que nenhum animal selvagem conhece.
Mas temos que reconhecer, que de vez em quando, aparece algum homem que lembra um reflexo da Divindade – mas esses homens representam a infinitesimal parte do grosso da humanidade que ainda rasteja nas planícies estéreis da mediocridade.
Devemos então admitir que as Potências Cósmicas falharam quando diziam “façamos o homem à nossa imagem e semelhança?” Devemos supor que a serpente astuta tenha derrotado essas Potências? E que tenha até frustrado as obras dos avatares que teriam vindo para reintegrar a humanidade no seu grande destino?
Se não podemos ver no homem a coroa da creação, e se, por outro lado, não podemos admitir uma falência da Divindade e dos avatares, só nos resta recorrer a uma terceira alternativa.
“Deus creou o homem o menos possível, para que o homem se possa crear o mais possível”.
Essas palavras geniais de um pensador moderno significam que as Potências Cósmicas, a que se refere o Gênesis, não tinham de início a intensão de colocar aqui na terra uma creatura divinamente perfeita; mas lançaram uma espécie de semente humana dotada de uma creatividade inédita, que, através de milênios futuros, pudesse desenvolver-se numa creatura diferente e superior a todas as creaturas já existentes.
Toda vez que o Gênesis narra o término de um dos seis períodos da creação, diz: “E as Potências Cósmicas viram que era bom.” Mas quando se encerra o último período creador, que se refere ao homem, diz: “E as Potências Cósmicas viram que era muito bom”.
Bom é o mundo das creaturas creadas, muito bom é o mundo da creatura creadora, o homem. Muito bom é o homem, apesar de poder ser muito mau – é esta a sabedoria paradoxal das Potências Cósmicas. Grande é um artífice que tivesse a habilidade de construir uma máquina de alta precisão – genial seria um artífice que tivesse a habilidade de inspirar à matéria-prima a possibilidade de produzir por impulso intrínseco, uma máquina de alta perfeição.
Ao crear o homem, as Potências Cósmicas o dotaram de uma parcela de genialidade creadora da própria Divindade, para que ele, em virtude dessa creatividade, se pudesse fazer melhor.
Nesta creação indireta, o Creador se revelou maior do que em todas as suas creações diretas. Todas as creações eram boas – muito boa, porém, é a creação do homem.
Mas se o homem tem a intrínseca possibilidade de se fazer melhor, possui também a possibilidade de se fazer pior. Se não houvesse duas alternativas opostas, não haveria livre-arbítrio.
Uma única creatura autorrealizável reverte em maior glória do Creador do que milhões de creaturas externamente realizadas.
De maneira que o plano das Potências Cósmicas não foi frustrado por um poder adverso. Esse poder adverso era necessário para que o homem fizesse de si algo maior. O aparente caráter adverso da serpente era, na realidade, um fator complementar para dinamizar a potencialidade creadora do homem embrionário. A aparente antidromia das Potências Cósmicas, que se servem das trevas para realçar a luz e repartir com o homem a sua creatividade, revela a maior genialidade creadora, que transferiu o poder à creatura humana uma parcela da sua creatividade divina. 1
Paulo de Tarso parece ter vislumbrado esta verdade quando escreveu: “Onde abundou o pecado superabundou a graça”. E o hino pascal do Exultar enaltece a “culpa feliz” e o “pecado necessário” que culminou em “tão glorioso redentor”. E o próprio Jesus advertiu: “Por Moisés foi dada a lei, mas por mim veio a verdade e a graça”. A lei é a imperfeição do ego adâmico, a verdade e a graça são a perfeição do Eu crístico.
Os interpretes exotéricos não tem a habilidade de compreender a genialidade esotérica do Creador; a sua visão unilateral interpreta erroneamente a visão multidimensional, transcendental das Potências Cósmicas, que sabem escrever direito por linhas tortas. O homem de visão míope enxerga apenas as linhas tortas da humanidade, e não vê o plano direito da visão cosmorâmica da Divindade. 2
A evolução, sobretudo a do homem, vai com passos mínimos em espaços máximos, e as Leis Cósmicas são essencialmente elitizantes, e não massificantes. Não se interessam em perpetuar massas quantitativas, mas visam tão somente a realização de uma elite qualitativa. As massas quantitativas convergem para uma elite qualitativa; as horizontalidades culminam numa verticalidade. As Leis Cósmicas não pretendem “salvar” a humanidade, mas sim “realizar” o homem. Toda a tendência do Universo é ascensionalmente evolutiva e hierarquizante.
Todos os livros sacros, desde o Gênesis até o Apocalipse, são esotéricos, que não podem ser compreendidos pelos exotéricos profanos, mas tão somente pelos esotéricos iniciados.
Quanto mais o homem se concentra no Uno (o Creador) da implosão intuitiva, mais ele compreende o verso (as creaturas) da explosão analítica do Universo – seja do ponto de vista do macrocosmo sideral, ou do microcosmo hominal.
A nova humanidade crística, depois de se expurgar das escórias da velha humanidade adâmica, através de milênios de luzes e trevas, de altos e baixos, de verdades e erros, voltará ao seu habitáculo original, ao mais belo dos planetas do nosso sistema solar envolto no deslumbrante azul da atmosfera.
E só então, depois de haver um “novo céu”, haverá também uma “nova terra”.
Ninguém pode imaginar o que será de um bloco de mármore sem forma, enquanto algum Michelangelo o desbasta com violentas marteladas; somente o próprio escultor conhece a imagem futura – algum Moisés, alguma Pietá – porque essa imagem já existe em sua mente de artista antes de emergir da matéria bruta.
Na humanidade de hoje existe a imagem e semelhança de Deus, não dinamicamente, mas potencialmente. Muitas marteladas são necessárias até que o homem integral apareça em toda sua glória.
Sócrates, o genial filósofo que nunca escreveu filosofia, era também um exímio escultor. Certa vez, foi encarregado pela prefeitura de Atenas de esculpir uma ninfa, de um bloco de mármore branco. E, quando a formosa entidade emergiu do bloco sem forma, todos felicitaram Sócrates pela sua obra. O filósofo, porém, recusou os elogios, porque dizia que não fora ele que esculpira essa ninfa; ela estava escondida dentro no bloco de mármore; ele apenas removeu o que impedia a sua visão aos olhos do público. Sócrates já via intuitivamente a ninfa antes dela ser visível aos olhos do corpo.
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1)- A antidromia designa uma entidade de elevada evolução que resolveu descer da sua altura para regiões de vibração espiritual inferiores; a descida de uma divindade ou espírito muito evoluído (Avatar) e sua consequente manifestação concreta encarnada na terra, em forma humana. Jesus foi um dos maiores avatares encarnado entre os homens.
2)- Exotérico - Destinado a ser vulgarizado (falando principalmente das doutrinas dos antigos filósofos). De que não se faz mistério, comum, trivial, vulgar. Esotérico - Pouco compreensível pelo comum dos mortais, hermético, obscuro.
Texto revisado, extraído do livro ENTRE DOIS MUNDOS
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